As fontes do afeto

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As fontes do afeto 23 outubro 2013

Começo do verbete, a seco:

Afeto é tudo aquilo que se inclina ao que é bom, ao que é pleno de sentimento; indica uma característica disposição, condição e estado para o movimento, para a impressão de si próprio no outro. Afficere é, sem mudanças de significado desde os primórdios latinos, sempre, afeto.

Pensei em afeto ao acordar. E lembrei-me da foto ao lado, tirada há algumas semanas na sala de aula de uma professora paulistana. Esqueci-me do nome da planta, o que é uma pena, mas a fotografia aí está, prova de que o mundo é um lugar recheado de sentidos e símbolos, para os quais ou nos abrimos ou nos abrimos. O tempo vai ficando curto.

Sem água, nem terra, essa plantinha floresceu na sala de aula. As carinhas dos quase 30 alunos que frequentam o lugar todos os dias floresceram junto com ela, encantados com o milagre da vida em processo de desabrochamento. A professora também. Mostrou-me a flor como se mostrasse seu mais precioso bem. Não sei se será da natureza dessa planta prescindir de elementos tão básicos ao mundo vegetal, pode ser que sim. Mas creio que ela se nutriu com muita tranquilidade e gratidão da quantidade descomunal de afeto que mora dentro dessa sala. Respira-se, o afeto. Percebe-se nos abraços, na troca de olhares, nos sorrisos de entusiasmo ao falar do percurso que se caminha.

Parece simples, mas não é tanto. O afeto pressupõe uma série de atributos, desses que é preciso desenvolver ao longo da vida, com o alto grau de consciência que nos cabe ter, humanos deste século, em relação a tudo. É preciso, já disse ali em cima o verbete, estar disposto ao afeto, e estar disposto significa que é preciso estimar, valorizar, encontrar e colocar em um lugar. A pequena planta é objeto de uma enorme estima pelas pessoas que estão ao seu redor; essas pessoas valorizam a sua presença ali (quase se curvam, em reverência doce); encontraram-lhe um lugar (a linda tigela de argila feita ? mão, a mesa da professora, de onde pode ver a todos) e ali a puseram. Passam por ela todos os dias, e todos os dias ela recebe essa emanação do afeto que é diário, presente e frequente.

É preciso também, para o afeto se realizar, condição, raiz primeira de todas as palavras que nos conduzem ? noção de acordo ou compromisso. As pessoas que cuidam dessa planta, que se dispuseram a tê-la em suas vidas, comprometeram-se a cuidar dela: é por isso que ela ali está. Bem provável que, não houvesse essa condição (que é também capacidade), a planta já não estivesse mais onde a encontrarei amanhã, quando chegar mais uma vez a essa sala. É a capacidade de compromisso o que faz com que a planta permaneça junto a quem lhe quer bem. Não seria o bastante querer-lhe bem, e não se lembrar de olhar para ela com atenção todos os dias. Ela murcharia, sem o manto com que o afeto a protege.

Nessa linha trimembrada de necessidades para a expressão e o recebimento do afeto, é preciso ainda um estado. O estado do afeto. Stare, para os latinos, não era apenas e simplesmente “estar”: “estou aqui… você não me vê?”. Stare é uma particular forma de estar em presença de outro. É estar de pé. É estar erguido. É estar na posição vertical, que é a posição que nos coloca na condição de ser humano. Para o afeto existir, para ser sentido, para ser doado, para ser vivido, é preciso estar de pé. Afetos que se encostam, porque se cansam; afetos que não se levantam, porque pensam não precisar; afetos que se deitam, porque querem adormecer; afetos que olham para baixo, porque não sabem o que fazer com o que veem ? sua frente; afetos que se demoram ao espelho, porque não sabem bem como lidar com suas rugas e seus cabelos brancos – não são afetos. Serão simulacros, serão tentativas. Mas falta-lhes disposição, falta-lhes condição e falta-lhes, sobretudo, o estado de presença que plantas, animais e seres humanos precisam para não murchar.

O afeto presente e ativo, manifestado no movimento que imprimimos aos nossos corpos, desabrocha no coração alheio. É preciso coragem, é preciso entrega e é preciso remar contra a maré de um mundo que nos oferece, de bandeja, o desafeto embalado em papel celofane. É difícil e árduo, mas se pensarmos bem, é o que vale a pena. Nessa condição em que chegamos a este mundo, de mãos vazias, e de onde partiremos, de mãos vazias também, o que resta de nós é o que semeamos enquanto aqui estamos. Os campos são os outros. A minha semente é o afeto.

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