Aproveito o dia ensolarado pra levar minha xícara de chá a passeio. Do outro lado da rua, com o calor característico desta cidade logo ? s 8 da manhã, dona M. já está de mangueira em punho e vestido de alças, nesse cotidiano esporte local que constitui lavar calçadas. Em seu rosto redondo, dois olhinhos apertam-se querendo que eu acredite que ela sofre de vista difícil. Não consegue, eu já tenho provas suficientes do quanto M. é expert em ver as coisas do outro lado da calçada no caso, as minhas janelas. É efusiva, ela, e dirige-me o cumprimento costumeiro, abraçando-me com seus braços largos.
? Ana, mas quanto tempo… desta vez fica o resto do mês?
Não lhe digo nem que sim nem que não, devolvo-lhe o sorriso e ouço-a reclamar da sujeira da frente de casa.
? Nada disso é meu, vê se pode… ? e vai varrendo hidraulicamente a tal da sujeira até o limite da casa do lado esquerdo.
? Novos vizinhos, dona M.? ? pergunto-lhe, percebendo o quanto eu mesma atravessei a rua querendo saber da vida alheia. Estas coisas pegam-se.
Pois é: novos vizinhos.
? Você não sabe o que eu estou passando, Ana.
Por acaso sei. Ouvi-os uns dias atrás, num pagode que durou o dia inteiro e insinuou continuar noite adentro, interrompido apenas (descubro agora) pela ameaça de dona M. chamar a polícia.
? Gente difícil, Ana, eu não merecia isso no fim da vida… Olha lá a janela do meu quarto, não consigo mais dormir…
Agora é dona L. quem atravessa a rua. Magra e baixa, de cabelo curto todo branco, parece um passarinho correndo através dos paralelepípedos. Tem um piano em casa, e, quando a filha vem visitá-la, a rua inteira ouve as sonatas que a sua memória recupera.
? Vi vocês lá da janela da sala! Um convescote em plena manhã, que beleza!
E dá-me dois beijos sonoros, um em cada bochecha, que é o que sempre faz quando me vê.
? M., minha filha, que barulheira foi aquela esses dias? Quase chamei a polícia pra você! ? e dona M. retoma o fio da reclamação do pagode vizinho, que lá pela meia noite já não concatenava o ritmo do surdo com as batidas esporádicas de um pandeiro perdido.
? E bebem, L., como bebem, ai que tristeza…
Dona S., do outro lado, abre o portão e torna a fechá-lo correndo. Minhas duas companheiras abrem ao mesmo tempo um sorriso mecânico, calam-se e entreolham-se como se tivessem combinado. E decidem querer saber como estou. Na verdade, não querem: querem saber é da minha convivência com dona S. Não sei a quê andarão prestando atenção, mas desconfio que esse sorriso automático tenha alguma relação com a calçada. Dona S. ainda não perdeu o costume de lavar a minha calçada quando a lava a própria, e me fazer saber do fato (coisa que acontece, pelo que sei, todos os dias). De pouco adianta eu lhe dizer que prefiro não a lavar, que gasto de água sem necessidade etc etc. Estas duas senhoras devem ter ouvido reclamações do lado de lá.
Para desviar do assunto dona S., elogio o muro de dona L., todinho recoberto de unha de gato, numas formações antigas e bem aparadas que parecem até desenhar silhuetas medievais por cima dos tijolos chapiscados. E digo-lhe que não vejo a hora dessa obra interminável de minha casa acabar para poder plantar pelos menos umas três árvores na frente dela pata de vaca, ando pensando, uma de cada cor… Dona L. não perde tempo.
? Ah, Ana, boa sorte. O pobre do seu Ambrósio [defunto morador da minha casa] bem que tentou… As mudinhas sumiam toda vez que ele as plantava, de madrugada, ninguém sabe como e, enquanto fala, seu olhar passeia entre as casas de dona S. e a de sua filha, cada uma a um lado da minha. Dona M. encolhe os ombros e dispara na direção de L.:
? Vizinhos a gente não escolhe, vai fazer o quê…
E L. cabeceia e marca seu gol de saída:
? Mas M., a Ana aqui foi premiada! Dos dois lados? ? e ri até dizer que está na hora de entrar, precisa caprichar no almoço, que a filha vem visitar. Vamos ter piano mais tarde no nosso quarteirão.
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