Pesquisa da Faculdade de Medicina da Unesp pretende garantir avanços na assistência integral a esse público em Botucatu
Na tarde de quarta-feira, 21 de agosto, na Sala da Congregação da Faculdade de Medicina de Botucatu (FMB/UNESP) aconteceu o lançamento do projeto “O Cuidado à saúde da criança com Síndrome de Down na atenção primária à saúde em Botucatu-SP: protocolo e fluxograma de diagnóstico e assistência integral no Sistema Único de Saúde”.
Liderada pela Professora Associada Cátia Regina Branco da Fonseca, docente e pesquisadora do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina de Botucatu (FMB/UNESP), a proposta foi aprovada na chamada (2023) do Programa de Pesquisa em Políticas Públicas – PPPP da FAPESP, que financia pesquisas sobre o atendimento de demandas sociais concretas, desenvolvidas em parceria entre universidades e instituições de pesquisa e órgãos governamentais ou organizações não-governamentais (ONGs).
O projeto tem a FMB como instituição sede e a Secretaria Municipal de Saúde de Botucatu como instituição parceira e conta com suporte do EAP – Escritório de Apoio à Pesquisa e da UPESC – Unidade de Pesquisa em Saúde Coletiva. Com prazo de execução de três anos, o trabalho busca promover, por meio de um conjunto de ações, a assistência integral às crianças com Síndrome de Down na Atenção Primária em Saúde de Botucatu, a partir do aprimoramento dos registros no Sistema Municipal de Informações, com a implantação de protocolo e fluxograma de assistência.
Além da professora Cátia Fonseca, a mesa de abertura contou com as presenças do diretor da FMB, professor Carlos Magno Castelo Branco Fortaleza; do secretário de saúde do município de Botucatu, Dr. Marcello Laneza Felício e da ativista cultural Isabela Araújo Silva, representando os pais que têm filhos com Síndrome de Down. O evento também reuniu o primeiro grupo de cerca de 30 agentes comunitários de saúde que foram capacitados para realizar o trabalho de levantamento e registro de informações junto às famílias que serão atendidas pelo projeto.
Em uma breve apresentação, Cátia falou sobre os objetivos da proposta e as metas a serem alcançadas no transcorrer do trabalho que deverá ser executado ao longo de três anos. Segundo a pesquisadora, Botucatu oferece muitos serviços, mas é preciso avançar em termos de organização e fluxo para atendimento às pessoas com Down. “Temos a rede estruturada, os profissionais de saúde nas unidades, uma boa distribuição das unidades de saúde, temos os níveis de reabilitação (fono, fisio, T.O.) em vários locais no município. O que falta é organização, com a identificação dessa criança com Síndrome de Down e o reconhecimento das necessidades que ela têm para que possamos investir no seu crescimento e desenvolvimento, finalizando com a criação de protocolos e fluxos de assistência. Essa será a grande contribuição desse projeto.”
Reconhecimento, parceria e apoio
Isabela Araújo relatou que seu filho Chico, de 11 anos, já passou pela escola regular e hoje estuda na Apae, onde recebe atendimento especializado por conta de apraxia de fala que o impossibilita de se comunicar verbalmente. O acompanhamento que recebe desde que nasceu, por parte da FMB e do HCFMB, segundo ela, foi decisivo para que chegasse bem a essa etapa de sua vida.
“Pra quem é mãe faz toda a diferença quando chega em qualquer lugar, no mercado para fazer uma compra, no restaurante para ser atendido, a maneira como as pessoas olham para seu filho e cuidam dele. O Chico tem 11 anos e sinto uma imensa diferença ao longo desse tempo. Claro que existe a questão da família aceitar a condição daquela criança, entender como funciona, já que a gente se assusta no começo e se questiona: o que eu vou fazer agora. Mas acho que enquanto sociedade estamos melhorando muito. As pessoas estão olhando mais para essas crianças, percebendo que elas existem. Depois que nossos filhos nascem, a impressão é que encontramos muito mais Síndrome de Down nas ruas. Eles começaram a surgir do nada? Não. É que até então a gente não olhava já que não tinha um na nossa família. Costumo brincar que as crianças estão saindo do armário. Podem ir na escola, podem ir no teatro, podem e devem frequentar os lugares. E no que diz respeito ao atendimento de saúde aqui em Botucatu temos totais condições de sermos super pioneiros em uma série de coisas”.
Isabela lembrou do período em que teve que ir para São Paulo passar um tempo ao lado da família. Lá foi incentivada a levar Chico a um especialista consagrado. “Na hora que eu cheguei lá ele não falou absolutamente nada de diferente, de inovador em relação ao que a Dra. Cátia já tinha me passado, do que a gente já vinha fazendo aqui na Faculdade de Medicina. E lá eles cobram uma fortuna, saem em jornal, em revista. Botucatu, uma cidade pequena do interior, tem totais condições de dar tudo de bom e melhor aos nossos filhos. Só tenho a agradecer mesmo”.
Marcelo Felício, secretário de saúde de Botucatu, disse ser uma grande alegria participar do lançamento de um projeto voltado a aperfeiçoar o atendimento às pessoas com Síndrome de Down. Assim que veio atuar na região como cirurgião cardíaco, passou a atender mais crianças do que adultos e tinha contato grande com pacientes com Down já que em torno de 50% tem malformação cardíaca. “Muitas chegavam para atendimento numa fase tardia, só quando tinham alguma manifestação. Não tinha diagnóstico, não tinha acompanhamento. Acho que é importante os pais saberem que poderão contar com a assistência para ter o devido cuidado. E não se trata apenas de questões cardíacas. Falamos também das doenças associadas, da estimulação precoce ou do acesso à equipe multiprofissional. É papel da secretaria de saúde estar aberta a esse tipo de parceria que a gente faz hoje com a FMB, palco de ensino, para o desenvolvimento de projetos e construção de políticas públicas. Isso tem que impactar na vida das pessoas e fazer a diferença”.
Ao abrir seu pronunciamento, o diretor da FMB, Carlos Fortaleza, falou da satisfação e orgulho de ver a instituição liderando um projeto dessa envergadura, da parceria entre a universidade e o município voltada a atender questões que afetam diretamente a comunidade e uma população que precisa de atenção diferenciada e pelo fato do projeto ter sido selecionado em um concorrido edital da Fapesp, graças ao apoio técnico que a proposta recebeu do EAP – Escritório de Apoio à Pesquisa, órgão que coordenou por oito anos.
“Mas o que me deixa feliz, acima de tudo, é ver a relevância do tema. Existem algumas condições que tornam a população específica vulnerável a uma série de doenças e agravos e que fazem com que essa população precise ser abordada, cuidada e vista com olhos muito especiais. Essas condições, muitas vezes, além de passarem despercebidas, não têm o apoio necessário do sistema de saúde, por lapsos de conhecimento, por falta de sistematização na atenção, no cuidado”, comentou.
Na perspectiva do que esse projeto voltado às pessoas com Síndrome de Down pode alcançar, Fortaleza relembrou o que acontecia na década de 1980, com as pessoas diagnosticadas com HIV/Aids que passaram a ser uma parcela importante da população. “Esses grupos eram estigmatizados, mas depois, progressivamente, profissionais de forma heroica passaram a cuidar dessas pessoas. O resultado disso é que o Brasil desenvolveu um programa de cuidado que é elogiado pelo mundo inteiro. Down é a mais comum dentro de uma série de síndromes que podem causar problemas cardíacos e outras complicações clínicas, outras vulnerabilidades que precisam de um olhar especial. Todas as vezes que uma medida ou política pública é direcionada a um grupo como esse, numeroso e não tão raro, mostra a importância e a urgência de adotarmos medidas para sistematizarmos a atenção, o acolhimento e o cuidado com essas populações. Nesse momento sentimos que a universidade cumpre seu maior papel, que é de formar para garantir uma atenção na assistência, um cuidado de saúde para a população. Estar a frente da faculdade em um momento como esse só pode me encher de orgulho e felicidade”.
Olhar diferenciado
No Brasil, estima-se que a síndrome de Down (SD) acometa cerca de 300 mil pessoas. A importância de conhecê-la, assim como suas comorbidades, tem relação direta com a qualidade de vida, prognóstico e inclusão social das pessoas com essa condição genética. Aqui e em diversos outros países, existem protocolos e diretrizes para o atendimento individualizado às crianças com Síndrome de Down, desde o diagnóstico antenatal ou ao nascimento, com propostas bem estabelecidas de seguimento multiprofissional e interdisciplinar, e exames complementares necessários. Estas ações compõem a Política Nacional de Atenção Básica e Integral à Saúde da Criança (PNAB, PNAISC), do Sistema Único de Saúde (SUS).
De acordo com os especialistas, para o cuidado integral à saúde das crianças – incluindo as com Síndrome de Down -,é importante que haja, uniformidade na assistência prestada pelos profissionais da Atenção Primária em Saúde (APS), que é a porta de entrada no sistema público de saúde e, um fluxograma para o atendimento integral nas unidades e nas instituições da rede de apoio especializada e multiprofissional.
“Desde 2008 eu venho construindo essa linha de pesquisa e cuidado com as crianças com Síndrome de Down. Foi quando aqui no Ambulatório de Puericultura a gente começou a atender de forma organizada essas crianças. Na ocasião comecei a aplicar algumas pesquisas. E passamos a ver que a assistência em saúde dos municípios em geral ainda tem dificuldades em lidar com esse público. A partir desses diagnósticos, das dificuldades na assistência nos municípios na atenção primária a essas crianças e da importância do cuidado integral, quando veio a chamada da FAPESP pensei ser a oportunidade ideal para propor esse projeto e ao mesmo tempo organizar essa política pública”, explica Cátia Fonseca.
A docente e pesquisadora que lidera o projeto lembra que as crianças com Síndrome de Down entram em um grupo de maior vulnerabilidade, que precisa de um olhar diferenciado. “Pensando na primeira infância, que contempla os seis primeiros anos de vida, se elas forem bem acompanhadas e com os estímulos oportunos terão um desenvolvimento muito melhor. Percebemos que estamos fazendo a diferença dentro do HC para poucas crianças que chegam até o serviço. Porque os municípios não conseguem fazer a diferença para suas crianças? É porque não temos a assistência estruturada assim como acontece com o pré-natal, por exemplo. O Down não é uma doença, é uma condição genética em que podemos interferir positivamente e melhorar muito a vida das crianças e dos adolescentes, ainda mais com as tecnologias de saúde atuais”, explica.
Como será o trabalho
A proposta é desenvolver o treinamento e promover ações de educação em Saúde com todos os profissionais da Atenção Primária em Saúde do município, uma vez que já foram identificadas, em pesquisa anterior, lacunas que precisam ser sanadas na assistência em saúde das crianças com Síndrome de Down.
A Secretaria de Saúde do Município apoiará e dará condições para as ações da pesquisa, e para a formação em Educação em Saúde, bem como para a revisão e implantação do protocolo e do fluxograma assistencial. Haverá a participação da equipe de gestão em Tecnologia da Informação, bem como dos profissionais da Atenção Primária em Saúde, incluindo os agentes comunitários de saúde.
Cátia explica como o processo de identificação das crianças, treinamento dos profissionais envolvidos e sistematização das informações deverá acontecer. “A primeira coisa a ser feita é identificar essas crianças. Quais são as famílias que têm crianças, adolescentes ou pessoas com Síndrome de Down. A partir disso fazer o registro no sistema do município. Os agentes comunitários de saúde serão capacitados para reconhecer essas famílias, essas crianças e alimentar o sistema com as informações. Esse é o primeiro passo. A partir daí, vamos ver qual o nível de conhecimento dos profissionais de saúde sobre essa organização da assistência, porque tenho passos, exames, encaminhamentos necessários para essa criança. Feito isso, se houver essa necessidade, vamos promover a capacitação dos profissionais (médicos, enfermeiros, atendentes das unidades). Daí veremos quais os recursos existentes no município e como organizamos esse fluxo. Em que momento a criança é atendida pela rede básica, quando vem para o hospital, quando deve ir para a APAE, para a APAPE, quando precisa de reforço educacional, como será inserida na escola. A partir desse reconhecimento e dessa capacitação eu elaboro conjuntamente com as instituições de saúde e educação do município o fluxo da assistência. Com isso disseminado, teremos o cartão da criança para ter todo o acompanhamento necessário”.
A intenção é que, assim como acontece como as gestantes que contam com um cartão de pré-natal onde se anotam consultas, exames e outros procedimentos a serem feitos, o mesmo aconteça para acompanhamento das crianças com Síndrome de Down. “Esse é o meu pensamento. Disponibilizar um cartão com as datas de consultas, exames, estimulações que a criança necessita em idades-chave. Esse acompanhamento é fundamental, de forma que em qualquer unidade seja possível verificar se está sendo feito ou não. É preciso que haja o entendimento que a criança precisa seguir isso para crescer e se desenvolver. Essa é a grande diferença que esse projeto trará”.
Legado
Para a líder do projeto, outro aspecto positivo a ser destacado é que o trabalho agregará uma série de pesquisas que envolvem aspectos clínicos, nutricionais e da própria assistência às crianças com Síndrome Down, tema que em comparação com outros temas, ainda é relativamente pouco estudado. Espera-se, como resultados das pesquisas sobre alimentação e segurança alimentar, assistência segundo a PNAISC e avaliação de hábitos intestinais e prevalência da constipação intestinal crônica, identificar abordagens específicas e aprimorar e implantar protocolos e fluxograma de assistência às crianças com Síndrome de Down e a elaboração e implantação de Procedimento Operacional Padrão (POP), e da linha de cuidado para esse público específico.
“Teremos mestrado, doutorado, iniciação científica, vários projetos para produzir conhecimento nessa área. A partir do momento que identificarmos onde estão essas crianças nós vamos começar a desenvolver projetos de pesquisa que nos ajudem a aprimorar a assistência. Já tenho uma mestranda que vai trabalhar a questão nutricional dessas crianças. Vou ter uma doutoranda que vai abordar os hábitos intestinais que essas crianças têm. Outra doutoranda que vai trabalhar a questão do adolescer da criança com Síndrome de Down. Uma mestranda que vai focar nas potências e nas dificuldades, para que possamos documentar a gestão do projeto e desta forma possamos replicá-lo, futuramente”, explica.
Como legado, o projeto pretende servir de piloto para criação de protocolos para outras alterações ou doenças da primeira infância, como por exemplo, o Autismo. “No caso da Síndrome de Down, o diagnóstico acaba sendo facilitado por algumas características que a criança apresenta e pelo exame do cariótipo ser bastante acessível. Mas eu penso que é possível seguir os mesmos passos para melhorar a assistência em várias outras situações. Queremos deixar essa base para que essa sequência aconteça”, revela Cátia.
Questionada sobre sua expectativa ao final dos três anos de projeto, a docente disse que espera que o trabalho contribua para modificar para melhor a vida das crianças e dos adolescentes com Síndrome de Down. “Minha grande expectativa é que a gente construa uma base que nos permita ir para onde a gente quiser. Aí teremos condições de aprimorar a assistência em tudo o que a gente puder fazer. Outra grande coisa que me deixou feliz nesse projeto é que tinha muitas pessoas que queriam trabalhar com as crianças, com a atenção primária, com as crianças com Síndrome de Down. Quando elas viram o projeto passaram a enxergar, a partir dessa organização, uma grande oportunidade. Já tenho uma parceria com a enfermagem de um projeto de aleitamento materno que eu nem imaginava. Acredito que muita coisa vai acontecer além do que eu tinha pensado nesses três anos”.
Na sua visão, o projeto apoiará o processo da gestão pública e trará grandes contribuições para a comunidade, para a Atenção Primária em Saúde e para o SUS. “Esse projeto é resultado da caminhada que inicie em 2008, mas só foi possível graças a uma estrutura institucional muito boa. A parceria que firmamos foi a grande base para aprovação da nossa proposta junto a FAPESP. Isso inclui o Escritório de Apoio a Pesquisa (EAP), a Unidade de Pesquisa em Saúde Coletiva (UPESC), além da Secretaria Municipal de Saúde e da própria Faculdade de Medicina. Juntos vamos fazer a diferença na vida de muita gente”, prevê.
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