Rejane Grotto, pesquisadora da Unesp de Botucatu, diz que necessidade de observar cuidados permanece, pois doença causa centenas de óbitos semanalmente no Brasil
Pablo Nogueira/Jornal da Unesp
Na última sexta-feira, 5, a Organização Mundial da Saúde (OMS) anunciou uma alteração no status da covid-19, que deixou de ser classificada como emergência de saúde pública de interesse internacional. O anúncio foi feito pelo presidente da OMS, Tedros Adhanom, que declarou basear-se em recomendações do corpo técnico da entidade. “Está na hora de os países fazerem a transição do modo de emergência para o de manejo da covid-19 juntamente com outras doenças infecciosas”, explicou Adhanom. O anúncio repercutiu por todo o planeta, e foi comemorado por muitos como um sinal de que a própria pandemia já estaria chegando ao fim.
Porém, esta não é a interpretação adequada da fala de Adhanom, analisa a farmacêutica Rejane Maria Tommasini Grotto, docente da Faculdade de Ciências Agronômicas da Unesp, câmpus de Botucatu. Grotto, que coordena o Laboratório de Biotecnologia Aplicada (LBA) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Botucatu (FMB), explica nesta entrevista ao Jornal da Unesp a importância de manter os cuidados contra a covid-19, que ainda segue causando internações e óbitos. Destes cuidados, um dos mais essenciais é a atenção à vacinação – o país, aliás, desde o começo do ano se debate com uma nova onda de fake news, que procura convencer os brasileiros a não se vacinarem.
Ela também comenta os erros e acertos na luta contra o Sars-cov2 no Brasil, e os aprendizados que o enfrentamento à emergência trouxeram para os serviços de saúde e que podem ajudar a lidar melhor com uma futura nova pandemia. Entre eles, está a necessidade de intensificar o combate às fake news e melhorar a comunicação em saúde pública. “A vacina foi o que fez a diferença. Não podemos deixar de nos vacinar, tanto contra a covid-19 quanto contra as demais doenças ”, diz.
Depois de três anos, e mais de sete milhões de mortos em todo o planeta, no final da semana passada a OMS anunciou o final do estado de emergência em saúde pública de importância internacional para a pandemia de covid-19. O que isso significa?
Rejane Grotto: É importante ressaltar que o fim da emergência de saúde pública não significa o fim da pandemia, como o próprio dr. Tedros enfatizou. A pandemia mata uma pessoa no planeta a cada três minutos. Continuam ocorrendo internações e óbitos. Porém, esses números caíram bastante, o que permitiu que se decretasse o fim da emergência. Esse decreto significa que a partir de agora cada país deve lidar com a covid assim como lida com as demais doenças infecciosas. Mas ela segue sendo considerada como uma pandemia, ou seja, uma epidemia de transmissão sustentada de pessoa a pessoa entre países.
Por exemplo, até hoje a AIDS é classificada como pandemia, a maior que temos. Então, o decreto do fim da emergência de saúde pública é diferente do fim da pandemia. E eu vi na mídia muitos relatos que confundiam as duas coisas. Como se ele tivesse decretado o fim da pandemia, e não foi isso que aconteceu.
E o que essa continuidade da pandemia implica?
Rejane Grotto: A gente não pode deixar de se cuidar. Não podemos deixar de tomar vacina, por exemplo, nem de adotar algumas precauções. Se for preciso ir a um hospital, que é um ambiente onde há pessoas doentes, é bom usar máscara. Ou se alguém vai a um consultório médico, ou a uma farmácia. Pela farmácia circulam pessoas doentes. Não só por covid-19: outras doenças também, como influenza, vírus sincicial respiratório… Então é importante usar máscara, e é importante que a população possa discernir a necessidade desses cuidados.
A covid-19 ainda está matando. Continua morrendo gente pelo mundo, e no Brasil também. Na semana passada tivemos seiscentos e poucos óbitos em nosso país. É importante ressaltar que a pandemia não acabou e que os cuidados devem ser mantidos.
Continua morrendo gente pelo mundo, e no Brasil também. Na semana passada tivemos seiscentos e poucos óbitos em nosso país.
E no caso da Unesp?
Rejane Grotto: A gente já dispensou o uso de máscaras em ambientes da universidade em que não há contato com agentes biológicos. Nas áreas assistenciais da Unesp esse uso permanece, e já ocorria antes mesmo da pandemia. A máscara é um EPI, um equipamento de proteção individual que se mostrou extremamente importante durante a pandemia. Afinal, ela protege não só da covid-19, mas também da influenza e de outros vírus. Os dados mostram que durante a pandemia o índice de contaminação por doenças respiratórias caiu muito.
O que implica na prática a orientação para lidar com a covid-19 como se lida com as demais doenças?
Rejane Grotto: Uma pessoa que chegue a um hospital apresentando sintomas respiratórios deve ser isolada dos demais pacientes que estão no pronto-socorro e ser submetida a um teste rápido para covid, e também a um teste rápido para Influenza. Isso é um exemplo de como lidar com ambas as doenças da mesma forma. Se apresentar sintoma como baixa oxigenação, será colocada em uma enfermaria para receber oxigênio, independentemente de qual seja o agente que esteja causando o problema. Mesmo que tenha um teste negativo para covid e para influenza, se for preciso será internada numa UTI para receber suporte de oxigenação. E se apresentar comprometimento no pulmão, serão pesquisadas também as possibilidades de que a causa possa estar ligada a outras bactérias e outros vírus. Vamos fazer tanto testes para covid-19 como para influenza porque estes são os dois vírus respiratórios que mais circulam.
Então não haverá mais aquele isolamento especial para pacientes com covid-19?
Rejane Grotto: Isso vai variar de serviço para serviço. Mas não se pode colocar um paciente que esteja com influenza do lado de outro que não apresenta sintomas respiratórios. Nem alguém que tem covid-19 ao lado de alguém que tem influenza. Porque isso pode levar a que um contamine o outro. A prática de isolamento já existia antes da pandemia de covid-19, nos casos de influenza, por exemplo, e vai continuar existindo.
O que a experiência do enfrentamento do estado de emergência nos ensinou a respeito de nossa capacidade de enfrentar emergências globais de saúde?
Rejane Grotto: Acho que a pandemia nos ensinou muito. Primeiro, mostrou que é preciso agir rápido. Assim que se identifica o primeiro caso de uma nova doença, é preciso comunicar a OMS. Não é possível aguardar o que irá acontecer. Em segundo lugar ficou claro a importância de contar com infraestrutura científica. Aqui no estado de São Paulo, se não fossem os laboratórios estruturados da USP, Unesp, Unicamp, Unifesp e de todas as instituições que atuam com pesquisa, não teria sido possível implementar um sistema capaz de fazer diagnósticos tão rapidamente. Sozinho, o laboratório central não estava conseguindo dar conta da demanda, pois a doença se disseminou muito rápido no estado.
Aprendemos que para atender uma emergência de saúde pública é preciso dispor de laboratórios capazes de produzir pesquisa e ciência preparados. Hoje, nossos laboratórios, principalmente aqueles ligados a universidades, estão muito melhor equipados e preparados se for preciso enfrentar uma nova pandemia. Mas nada disso vai fazer diferença se a pessoa que identificar o primeiro caso de alguma nova doença não der o alerta. A partir desse alerta é que o mundo pode se preparar.
Por exemplo, nós conseguimos nos preparar antes que a covid chegasse a Botucatu. Fizemos algumas mudanças no hospital para poder atender esses pacientes, como oferecer o teste de diagnóstico padronizado. Esse foi outro aprendizado que a pandemia trouxe, é preciso estar preparado antes da chegada do agente infeccioso. Na minha opinião, se o alerta tivesse soado mais cedo, o mundo teria se preparado melhor.
Nada vai fazer diferença se a pessoa que identificar o primeiro caso de alguma nova doença não der o alerta. A partir desse alerta é que o mundo pode se preparar.
Houve outros aprendizados?
Rejane Grotto: Acho que ela mostrou a importância da união de todas as classes dos profissionais de saúde. Porque o médico não atuava se não houvesse o apoio da enfermagem, do profissional de nutrição, do de fisioterapia, da farmácia, dos laboratórios. Foi preciso que todas essas áreas agissem em conjunto. Por exemplo, no momento em que se obtinha um teste positivo, era preciso avisar os médicos, mas também a enfermagem para que o paciente fosse isolado. Igualmente importante foi a atuação dos centros de controle de infecções que funcionam nos hospitais. Aprendemos que para enfrentar essa emergência não adiantava a ação isolada do médico, ou do enfermeiro, ou do laboratório. As equipes devem ser multidisciplinares. Era muito difícil perceber isso antes, mas a pandemia deixou muito claro.
Aprendemos também a lidar com a montanha de dados que eram gerados pelo trabalho com as amostras. O meu laboratório, que fazia 1.500 diagnósticos por mês, passou a produzir 5.000 por dia, uma altíssima demanda. Foi preciso encontrar meios para otimizar o trabalho. Antes havia apenas uma pessoa responsável por fazer todas as etapas do teste. Agora, um profissional recebe a amostra, outro cuida da preparação para o processamento, outro faz a extração… É como se fosse uma indústria, fazemos uma divisão do trabalho que otimiza e agiliza o processo. Isso é muito importante.
Com esse montante de amostras, foi preciso automatizar alguns processos, e essa possibilidade de automação também se estendeu para outras rotinas. É o caso da rotina do HIV, e da rotina do HCV. Também aprendemos a trabalhar on-line. Quando é preciso participar de uma reunião com o Ministério da Saúde, por exemplo, não é preciso nenhum deslocamento, é possível fazer o encontro on-line. Isso otimiza muito o tempo. E esse legado não beneficiou apenas os serviços de saúde, e vamos levar para as futuras gerações.
Por fim, a pandemia forçou os laboratórios a se prepararem para eventos piores. Muitas instituições estruturaram laboratórios de contenção NB3. Eles são concebidos para lidar com vírus, bactérias e outros microrganismos que são classificados como de classe três. Eles são considerados perigosos demais para serem estudados nos laboratórios de tipo NB2, que são os que foram usados para fazer os diagnósticos da covid.
No momento em que o fim do estado de emergência foi decretado, o número de mortes por covid-19 no Brasil passava de 700 mil. Será que poderíamos ter feito algo diferente para que esse número fosse menor?
Rejane Grotto: Como disse antes, demorou para que soassem o alerta. Só quando se começou a constatar casos fora da China é que ficou claro que se tratava de um vírus realmente novo, e que era capaz de causar uma broncopneumonia como consequência da resposta inflamatória a ele. Talvez se pudéssemos ter iniciado a vacinação mais cedo… O problema é que o desenvolvimento da vacina demorou, porque era um vírus novo. Muita gente ressalta que a vacina contra o H1N1 foi obtida em muito menos tempo. Mas naquele caso havia anteriormente a vacina contra o vírus influenza B, que serviu de modelo. Porém, neste caso, nós lidamos com um vírus que era realmente novo.
É preciso que o país disponha de tecnologia que lhe permita produzir vacinas, e isso o Brasil tinha. Nós tínhamos o know-how, nosso país sempre se destacou na produção de vacinas. Acho que deveria ter ocorrido uma campanha de vacinação mais forte no início. E, inicialmente, muita gente não deu tanta consideração à quarentena de quem chegava Ao país. Muitas pessoas quebraram a quarentena. Acho que a população no começo não deu a devida importância ao que estava acontecendo. Via-se muita gente sem máscara. Mesmo quando já se pedia às pessoas que ficassem em casa, havia muitas pessoas em bares, em restaurantes. Talvez se tivéssemos adotado mais precocemente medidas educacionais para a população… Acho que faltou que se explicasse à população que aquilo era um risco enorme e que poderia matar muita gente.
Acho que no começo essa divulgação sobre os riscos foi pequena. Talvez se devesse ter feito algo maior. E também a gente aprende à medida que vai vivendo. Lembro que as primeiras previsões epidemiológicas estimavam que, na pior situação, o país teria 400.000 mortes. E o que estamos vendo equivale a quase o dobro do pior cenário que foi desenhado.
Acho que agora precisamos investir na educação no que diz respeito a doenças graves. Lembro que no início muitos jovens saíram às ruas porque circulavam fake news que diziam que os jovens não iriam morrer, que no máximo teriam sintomas semelhantes a uma gripe. E realmente, no começo, nós observamos que as crianças tinham sintomas mais leves. Mas, mesmo nesse caso, a criança pode transmitir a doença para o pai ou a mãe, que por sua vez pode passar o vírus para os avós, e essas pessoas podem apresentar um quadro muito grave.
O que acontecia com o Sars-Cov-2 é que ele não matava rápido. No início, os sintomas eram brandos. A pessoa podia pensar que estava com uma gripe. Isso permitia que a transmissão acontecesse. Ele alcançou uma ótima disseminação, porque sua letalidade era baixa. Até hoje está em 2%. Em 2021, finalmente veio a vacina, e foi a vacina que realmente salvou a vida de muita gente.
O Sars-Cov-2 não matava rápido. Ele alcançou uma ótima disseminação porque sua letalidade era baixa.
Fizemos um estudo em nosso laboratório e conseguimos mostrar que a variante Ômicron, mais recente, é tão capaz de matar uma célula quanto a variante gama. Só que a variante gama matou muito mais gente do que a Ômicron. Por quê? Porque quando a Ômicron surgiu, já havia 80% da população vacinada. Isso é mais uma prova de que realmente a vacina fez a diferença.
Você acha que a política de isolamento deveria ter sido mais forte?
Rejane Grotto: Se tivéssemos feito um lockdown de verdade, talvez não chegássemos a este número de mortes. Mas é preciso colocar tudo na balança, certo? Como ficaria a situação econômica no caso de um lockdown muito rígido?
Não sei se você se lembra, mas no início da pandemia houve várias matérias relatando que os jovens estavam fazendo festas em repúblicas, estavam fazendo aglomerações. Não se conseguiu transmitir a eles a real dimensão do que a gente estava vivendo. E aquele ano de 2020 foi catastrófico. Ainda não tínhamos vacina, era preciso que as pessoas adotassem medidas não farmacológicas, como o uso de máscaras, de álcool em gel, o distanciamento social.
Para mim, as medidas mais importantes são o alerta precoce e a educação da população. Isso não vai ser alcançado do dia para a noite; vai ser necessário um longo trabalho para que a população entenda a dimensão dos problemas de saúde pública e seu potencial para resultar em mortes.
O fato de que alcançamos percentuais tão elevados de vacinação contra a covid-19 trouxe algum benefício no que tange à vacinação contra outras doenças no Brasil?
Rejane Grotto: A vacina protege contra os casos graves. A pessoa pode ter a doença, mas são menores as chances de que ela precise de internação, exceto em casos graves como imunossuprimidos, transplantados, pessoas com AIDS e idosos. Só que hoje existe um grande movimento antivacina no país, e que não se opõe apenas à vacina contra a covid-19. Registramos agora uma baixa adesão à vacina contra a pólio. Imagine, esta é uma vacina que está em uso há trinta anos. E o vírus da pólio é drástico, se não houver vacinação é possível que a doença volte. Também estamos vendo uma baixa adesão à vacina contra a gripe. Há um vírus novo da gripe circulando, o N3, que está causando sintomas mais graves do que os anteriores. E já há vacina contra ele.
Esse movimento antivacina cresceu muito, e ainda não sabemos ao certo como isso aconteceu. Acreditamos que muito desse crescimento pode se dever às fake news, que são disseminadas pela internet. E agora, com o uso da vacina bivalente, a circulação das fake news aumentou muito, as fake news estão atrapalhando muito os esforços de vacinação. Então o importante é que, quando a pessoa receber alguma informação que trate de vacinas, seja pelo Facebook, pelo Instagram ou mesmo pelo WhatsApp, que, antes de compartilhar, curtir ou mesmo transmitir algo, ela vá conferir a fonte daquela informação. Checar se aquilo realmente é verdade, se se baseia em algum estudo.
Acho que existem duas vertentes. Uma é das pessoas que defendem a ciência, defendem a vida, defendem as vacinas. Na outra estão pessoas que não é que não queiram se vacinar; elas estão sendo influenciadas pelas informações que estão recebendo. Por isso digo que a educação é tão importante. As pessoas devem conferir qual é a fonte real daquela informação. Acho que essa é a grande mensagem.
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