Conhecida pelos sintomas que causa na pele, doença autoimune também causa lesões no ouvido interno. Pesquisadora da Faculdade de Medicina de Botucatu sustenta que dermatologistas devem adotar olhar mais amplo e procurar também por alterações neurológicas em diversas partes do corpo
Mônica Tarantino – Jornal da Unesp
Na última década, a ciência descobriu que as manifestações do vitiligo, uma doença crônica de origem autoimune, não se restringem à perda da pigmentação da pele e ao aparecimento de manchas brancas irregulares na superfície cutânea. Uma série de estudos tem mostrado que a condição pode causar também respostas inflamatórias mais intensas, problemas oculares e perdas auditivas importantes.
Além de motivar novos estudos, esses trabalho estão levando a medicina a repensar a abordagem do vitiligo. Em vez de uma doença autoimune de pele, como se acreditou por anos, a enfermidade passou a ser considerada um problema sistêmico com manifestações na pele e mucosas, mas que pode estar associado ao aparecimento de sinais e sintomas associados com alterações neurológicas em diversas partes do corpo.
A contribuição mais atual ao estudo do impacto ampliado do vitiligo veio de um time de pesquisadores brasileiros que investigou a associação entre a doença e um tipo específico de perda auditiva com padrões neurológicos (SNHL, sigla em inglês para Sensorineural hearing loss) em pessoas com o vitiligo não segmentar (quando as manchas são bilaterais e assimétricas).
“Já era sabido que pessoas com vitiligo tinham maior chance de perda auditiva, mas as causas ainda precisam ser estudadas em profundidade. Demos um passo importante nessa direção”, disse a principal autora do estudo, a médica dermatologista Helena Marchioro, que é doutoranda no Programa de Pós-graduação em Patologia da Faculdade de Medicina de Botucatu (FMB).
Os dados e as conclusões do trabalho foram compartilhados em uma carta enviada ao editor da revista Autoimmunity Reviews. A comunicação, intitulada Prevalence of immune-mediated inner ear disease in non-segmental vitiligo: A cross-sectional study, foi publicada no início deste ano.
O grupo liderado por Helena investigou uma amostra de 112 pacientes com idades entre 19 e 64 anos e diagnóstico de vitiligo não segmentar recrutados em ambulatório da Santa Casa de Misericórdia de Curitiba, no Paraná. Também participaram do trabalho 23 voluntários saudáveis que fizeram parte de um grupo controle. Todos foram submetidos a testes audiométricos e também a exames de sangue para rastrear a presença de um anticorpo, o anti-Hsp70, associado ao vitiligo e a outras doenças autoimunes, a exemplo de uma condição imunomediada que acomete o ouvido interno.
Os dados obtidos levaram a descobertas surpreendentes. “Quase 40% dos pacientes com vitiligo apresentaram alguma alteração auditiva neurossensorial bilateral, contra 18% no grupo sem a doença. É o dobro da frequência esperada na população brasileira adulta”, observa a pesquisadora. Ao todo, 28 pacientes com vitiligo e mais uma pessoa do grupo controle apresentaram perdas com padrão neurológico nos dois ouvidos. Já os exames de sangue indicaram a presença dos anticorpos anti-Hsp70 em 30 participantes do estudo, uma proporção equivalente a 26,8% da população estudada.
O passo seguinte da pesquisa foi excluir os casos explicáveis por fatores de risco conhecidos para a patologia auditiva, como o envelhecimento, a exposição ao ruído excessivo, uso de medicamentos ototóxicos, alterações metabólicas como o diabetes mellitus, infecções auriculares prévias, traumas e casos de perda unilaterais.
Feito isso, a equipe identificou 17 pessoas com SNHL de origem indeterminada (16,2%). E foi aí que os pesquisadores se viram diante de uma informação inédita. Ao sobrepor as informações desses pacientes com perda auditiva com a positividade dos testes para o anticorpo anti-Hsp70, os pesquisadores viram que seis voluntários (5,4%) preenchiam todos os critérios diagnósticos para a presença da doença imunomediada do ouvido interno (IMIED), considerada rara e de difícil diagnóstico.
Uma das hipóteses dos pesquisadores para investigações futuras dessa perda auditiva associada com a doença imunomediada do ouvido interno é a presença de melanócitos (as células produtoras da melanina, o pigmento responsável pela coloração da pele, cabelos e olhos) na cóclea, uma estrutura em forma de caracol que converte as vibrações sonoras em impulsos elétricos a serem interpretados pelo cérebro.
A cóclea também abriga as células ciliadas, que transmitem os estímulos sonoros para o nervo auditivo. Na presença do vitiligo, por razões ainda não completamente compreendidas pela medicina, o sistema imunológico ataca os melanócitos.
As conclusões dos pesquisadores reforçam a necessidade de uma abordagem multidisciplinar para tratar o paciente com vitiligo. “Queremos mudar o comportamento do dermatologista de olhar apenas para a pele dos pacientes com vitiligo, e que ele passe a avaliar possíveis perdas neurológicas associadas à doença”, diz Helena Marchioro.
“Se houver perda com padrão neurossensorial, a recomendação é que o profissional dê segmento para encontrar a causa e faça também o exame para identificar o anticorpo anti-Hsp70. Se for o caso de uma perda por doença imunomediada do ouvido interno, é possível tratar e impedir que progrida para uma surdez.”
De acordo com os pesquisadores, o tratamento atual com vitiligo depende da extensão e localização das manchas de despigmentação. Alguns dos métodos empregados envolvem o uso de medicamentos corticosteroides ou imunomodulares tópicos, fototerapia e uso substâncias para aumentar a sensibilidade da pele ao método e tatuagem médica, entre outros.
“Porém, em um paciente que tem vitiligo e diagnóstico de perdas auditivas por doença imunomediada, é preciso pensar também no uso de medicamentos imunossupressores”, diz Helena Marchioro. “A maior compreensão dessas conexões é fundamental para oferecer cuidados abrangentes que melhorem a qualidade de vida dos pacientes e reduzam os impactos das condições neurológicas associadas ao vitiligo.”
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