Estudo em animais proporcionou primeira avaliação experimental de que deficiência de oxigenação em recém-nascidos durante as primeiras semanas de vida está relacionada a hipertensão arterial primária em jovens e adultos.
Malena Stariolo/Jornal da Unesp
Pesquisadores da Unesp encontraram resultados promissores na busca pelas causas, ainda pouco conhecidas, da chamada hipertensão primária, uma condição que ocorre espontaneamente em humanos. A pesquisa, conduzida pelo docente Daniel B. Zoccal, da Faculdade de Odontologia da Unesp, câmpus Araraquara, juntamente com colaboradores da mesma unidade, sugere uma relação entre distúrbios respiratórios durante as primeiras semanas de vida e a tendência a desenvolver hipertensão durante a juventude e a vida adulta. O estudo, intitulado “Sympathetic dysregulation induced by postnatal intermittent hypoxia”, foi publicado na revista científica Sleep, que reúne pesquisas de alto impacto sobre o sono.
Apontada como o maior fator de risco para o desenvolvimento de doenças cardiovasculares, a hipertensão arterial, conhecida popularmente como “pressão alta”, afeta aproximadamente um terço da população mundial, entre homens e mulheres. No Brasil, dados do Ministério da Saúde apontam que, em 2021, 26,3% da população brasileira sofriam desse problema, com o percentual chegando a 27,1% das mulheres e a 25,4% dos homens – suficiente para relacioná-la entre as principais causas de mortes no país. A condição é classificada como primária quando é determinada geneticamente, e secundária quando se desenvolve a partir de outros problemas de saúde, como doenças renais, estresse e obesidade.
Apesar de sua relevância, as causas que levam à hipertensão primária não são completamente conhecidas, o que dificulta a adoção de medidas preventivas adequadas e eficazes por parte de médicos e pacientes. Aparentemente, um dos vilões envolvidos no surgimento da hipertensão arterial primária é o cérebro humano. Estudos prévios com pacientes hipertensos detectaram aumento da atividade elétrica por parte dos nervos que controlam o diâmetro dos vasos sanguíneos, num fenômeno regulado pelo sistema nervoso simpático. O resultado dessa atividade, sugeriam estudos teóricos anteriores, poderia ser o estreitamento dos vasos sanguíneos e a limitação da quantidade de sangue que passa por eles.
Essa cadeia de eventos, até agora, não havia sido observada experimentalmente. Foi essa experimentação, justamente, a grande contribuição trazida pelos pesquisadores da Unesp. “No nosso modelo experimental, usando animais, nós percebemos que existem disfunções no sistema nervoso central que levam a um aumento da atividade elétrica dos nervos simpáticos, isso gera uma vasoconstrição e, consequentemente, eleva a pressão”, diz Zoccal.
Problemas respiratórios no início da vida
Embora há tempos já se debatam modelos e teorias que relacionam o sistema nervoso central com o surgimento de hipertensão, até hoje não havia estudos mostrando a origem das alterações centrais. Essa ausência se devia, principalmente, por conta das dificuldades técnicas que o processo envolve. Ao conduzirem estudos que empregavam ratos naturalmente hipertensos, os pesquisadores da Unesp constataram que os animais compartilhavam uma segunda característica, além da hipertensão: todos apresentavam problemas respiratórios. Entretanto, em estudos que usavam ratos adultos, não era possível determinar em que momento da vida o problema respiratório apareceu e se ele poderia ter alguma relação com o quadro de hipertensão.
“Desconfiamos que, se ocorresse algum problema respiratório durante as primeiras semanas de vida, isso poderia levar a uma oxigenação inadequada para o sistema nervoso central, causando disfunções no sistema nervoso simpático e a hipertensão. A falta de oxigenação decorrente de irregularidade respiratória na vida pós-natal e infância podem ser observadas em outras patologias relevantes, como a apneia da prematuridade e apneia obstrutiva infantil”, diz Zoccal. Assim, para que pudesse testar a hipótese, o grupo de pesquisadores optou por utilizar filhotes de ratos normotensos, ou seja com pressão normal, e induzir nos animais uma condição chamada de “hipóxia intermitente”. Esse estado ocorre quando os indivíduos passam por períodos curtos de falta de oxigenação, que são seguidos pelo retorno à respiração normal. Nos recém-nascidos, essa condição se verifica de maneira mais comum durante o sono, quando os bebês passam por momentos de apneia nos quais ficam sem respirar.
Durante as duas primeiras semanas de vida, os animais com pressão normal permaneceram acondicionados em câmaras nas quais é possível controlar a quantidade de oxigênio recebida. O grupo de teste passou por ciclos nos quais havia momentos de redução de oxigênio, mas que logo em seguida eram normalizados. Após essa etapa, cuja duração correspondeu aos seis primeiros meses de vida de um ser humano, os animais eram removidos das gaiolas e continuavam seu crescimento em condições normais de oxigenação. Ao examinarem a pressão arterial do grupo durante as fases jovem e adulta, foi constatado que os animais que passaram pela hipóxia intermitente apresentaram a pressão arterial elevada, enquanto o grupo de controle, que se desenvolveu em condições normais de oxigenação, permaneceu com a pressão normal.
Com os animais jovens, o grupo voltou sua atenção para a atividade cerebral dos indivíduos hipertensos. Em especial, focaram em uma região responsável por controlar a atividade simpática do nosso sistema cardiovascular. “Essa região é essencial para a vida. Se, por exemplo, ela for destruída, nossa pressão arterial atinge níveis muito baixos. É ali que ocorre a origem da atividade simpática dos vasos sanguíneos”, explica Zoccal. Corroborando as hipóteses do grupo, ao olhar para a atividade cerebral nessa região, os pesquisadores perceberam que, nos animais que passaram pela hipóxia intermitente, os neurônios disparavam mais sinais. Isso pode representar a origem da maior atividade elétrica dos nervos simpáticos que controlam os vasos sanguíneos, diminuindo o seu diâmetro e, assim, aumentando a pressão arterial.
Alterações no DNA
Além de observar a atividade dos neurônios, os pesquisadores também analisaram a produção de uma proteína chamada de HIF (fator induzível por hipóxia). O HIF está relacionado à adaptação das células a situações de falta de oxigênio. Os níveis da proteína aumentam naturalmente quando humanos ou animais estam em condições de hipóxia, que podem ser causadas, por exemplo, por alguma doença, ou pela simples presença em regiões de altitude elevada. Entretanto, é esperado que, uma vez que a oxigenação seja restabelecida, a produção volte a se normalizar.
Os pesquisadores constataram que, nos neurônios onde a atividade se mostrava elevada, a produção do HIF também crescia. A diferença, porém, é que, mesmo decorridas semanas da normalização da oxigenação, o nível elevado de produção da proteína perseverou nos animais que passaram pela situação de hipóxia. “O HIF aparece em várias adaptações. Ele pode, por exemplo, aumentar a quantidade de vasos sanguíneos, o número de células, a atividade das células… Como suas ações são múltiplas, ainda não sabemos dizer como ele está afetando esses neurônios. Mas consideramos que ele exerce um papel-chave na modificação da atividade cerebral”, diz Zoccal.
Embora os resultados do experimento não tenham permitido identificar com precisão os motivos pelos quais os níveis de HIF permaneciam elevados no grupo de animais hipertensos, eles fortaleceram a relação entre problemas respiratórios no início da vida e o desenvolvimento de hipertensão arterial no futuro. Zoccal acredita que, em seus momentos iniciais, a falta de oxigenação tenha promovido alterações na leitura do DNA dos neurônios, causando a produção elevada de HIF. Como consequência, o aumento dessa proteína causou adaptações celulares que levaram ao aumento da atividade neuronal, que se manteve até a vida adulta.
No futuro, estudos em humanos
Zoccal se diz contente com o pioneirismo do estudo, mas não está satisfeito. Ele explica que não é possível, neste momento, estabelecer associações diretas entre os resultados experimentais e as causas da hipertensão primária em humanos; é preciso aprofundar as investigações. Os resultados, porém, abrem caminho para a realização de mais pesquisas, e a perspectiva é que no futuro o foco se volte para populações humanas.
Parte da dificuldade na identificação das causas da hipertensão arterial primária reside na complexidade do sistema nervoso central e do sistema cardiovascular, que controlam diversas variáveis do nosso corpo e, por sua vez, são controlados por outras tantas. “São várias peças dentro de um quebra-cabeças”, diz Zoccal. Ele se diz otimista quanto ao avanço da área. “Houve progresso no campo das formulações de hipóteses, mas a possibilidade de aprofundar nossos conhecimentos esbarrava em questões práticas. Hoje, a ciência já evoluiu muito tecnicamente. Acredito que vamos começar um novo caminho de aprofundamento, a fim de estabelecer novas conexões entre as peças do quebra-cabeças.”
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