
Estudo desenvolvido pelo professor Antonio Carlos Lottelli foi destaque do ASCRS 2025, em Los Angeles (EUA), maior congresso do gênero em todo o mundo

O Departamento de Especialidades Cirúrgicas e Anestesiologia da Faculdade de Medicina de Botucatu (FMB/UNESP) celebra uma grande conquista internacional: estudo desenvolvido pelo Professor Associado Antonio Carlos Lotelli, em conjunto com a Medical University of South Carolina (MUSC,SC-USA), foi reconhecido como o melhor trabalho de Catarata Pediátrica no Congresso da American Society of Cataract and Refractive Surgery – ASCRS 2025, maior evento do gênero no mundo, realizado em Los Angeles, EUA.
O estudo premiado representa um avanço significativo na área ao contribuir com uma importante atualização da calculadora pediátrica de lente intraocular (LIO), ferramenta criada pelo Professor Lottelli, para melhorar o planejamento cirúrgico de crianças com catarata. “Esse reconhecimento representa a recompensa de anos de dedicação. A nova versão certamente trará ganhos de precisão”, destacou o professor.
O docente também fez questão de agradecer aos colaboradores da MUSC – Dra. Larissa Gouvea, Dra. Rupal Trivedi e Dr. M. Edward Wilson – que contribuíram diretamente para o aprimoramento e a visibilidade do projeto e a FAPESP, financiadora do trabalho. “Essa conquista reforça o protagonismo da UNESP no cenário científico internacional e a excelência dos pesquisadores brasileiros no campo da oftalmologia”, enfatiza.
A American Society of Cataract and Refractive Surgery (ASCRS) é uma das mais respeitadas organizações médicas internacionais voltadas à cirurgia oftalmológica, especialmente nas áreas de catarata, cirurgia refrativa e corneana. Fundada em 1974, promove congressos de prestígio, como o ASCRS Annual Meeting, e atua como referência global em pesquisa, educação médica e inovação tecnológica.


Trajetória
Lottelli possui graduação em Medicina (1993), Residência médica em Oftalmologia (1993), Mestrado (2000), Doutorado (2004) e Livre Docência (2017) pela Faculdade de Medicina de Botucatu (FMB/UNESP). É atualmente um dos principais estudiosos de catarata infantil do Brasil.
Em 1998 começou a atuar como médico contratado assumindo o atendimento a pacientes com catarata no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Botucatu (HCFMB). Os procedimentos cirúrgicos viviam a fase de transição entre a técnica manual e a facoemulsificação. Como professor, em 1999, foi o responsável pela introdução da nova técnica na FMB. “Nessa época, a faculdade adquiriu um aparelho de facoemulsificação, mas eu não tinha nenhum treinamento. Com muita dificuldade introduzimos a técnica aqui. Era algo bem novo para mim, bastante desafiador”, lembra.
Foi em busca de conhecimento. Pouco tempo depois já treinava residentes para utilização da técnica. Nessa mesma época, o número de cirurgias de catarata realizadas no HCFMB saltou de 40 para 100 procedimentos/mês. Em meados de 2005 decidiu que era o momento de focar seu trabalho no atendimento dos casos de catarata pediátrica que chegavam ao serviço.
“Me incomodava o fato dos pacientes chegarem muito tarde para o tratamento. Sabemos que uma criança que nasce com catarata bilateral, por exemplo, precisa ser operada até os três meses de vida. Se o procedimento cirúrgico acontecer depois disso, ela será uma deficiente visual para sempre. É a diferença entre ser cego e ter uma acuidade visual normal”, comenta.
Em 2006, conseguiu aprovar seu primeiro projeto voltado a catarata pediátrica no âmbito do Programa de Pesquisa para o SUS – gestão compartilhada em Saúde – PPSUS. A proposta tinha como objetivo garantir que os exames do reflexo vermelho – popularmente conhecido como “Teste do Olhinho”, realizados em 30 municípios da área de abrangência do HCFMB, que apresentassem resultado alterado ou duvidoso, pudessem ser checados por um especialista a fim de estabelecer o diagnóstico oftalmológico e garantir que as crianças chegassem ao serviço especializado a tempo de realizar o tratamento.
A implementação do projeto permitiu a triagem de cerca de 7.600 crianças. Destas, 29 foram encaminhadas para avaliação em centro de referência sendo 16 crianças portadoras de doenças oculares e destas, 13 portadoras de catarata congênita/juvenil.
Avanço
Para aprimoramento da técnica cirúrgica oferecida aos seus pacientes, em 2008 o especialista decidiu realizar pós-doutorado nos Estados Unidos. Participou de Fellowship em Catarata Pediátrica no The Storm Eye Institute, Medical University of South Carolina (MUSC), South Carolina. “Entrei em contato com o Dr. Edward Wilson, da Carolina do Sul, um dos maiores cirurgiões de catarata pediátrica do mundo. Por quatro meses o acompanhei em Charleston, vendo toda técnica, como manejava os pacientes, os equipamentos necessários para tratar melhor a catarata pediátrica”, recorda.
De volta ao Brasil, o objetivo de Lottelli era de reproduzir por aqui as mesmas condições encontradas nos EUA para o atendimento de crianças com a doença. A estrutura foi adquirida por meio de outro projeto de sua autoria aprovado pelo PPSUS, transformando o serviço especializado do HCFMB em um dos mais completos e bem equipados do Brasil. O investimento permitiu que a unidade passasse a tratar e fazer o implante da lente intraocular em crianças a partir de 5 semanas de vida.
Linha de cuidado
Por conta das pesquisas que desenvolveu e a estrutura que montou na FMB e no HCFMB, em 2012 Lottelli foi convidado pela Secretaria da Saúde de SP para coordenar a reorganização do fluxo de atendimento de crianças acometidas pela catarata no estado. O objetivo era garantir que os pacientes tivessem acesso ao tratamento precoce. Para desenvolvimento desse trabalho, em 2013, teve mais um projeto selecionado e financiado pelo PPSUS. A iniciativa permitiu a implantação de linha de cuidado para crianças com alteração do exame do olhinho em todo o estado de São Paulo.
Foi estabelecida uma parceria entre seis centros especializados no atendimento de crianças com catarata, responsáveis por receber os pacientes com suspeita da doença: Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Botucatu (HCFMB), USP – Ribeirão Preto, USP-SP, Unicamp, Unifesp e Santa Casa de São Paulo.
O estado foi dividido por regiões e esses centros serviram de retaguarda para o atendimento especializado de crianças que já tivessem sido avaliadas por outros dois profissionais: o pediatra, que, por meio do Teste do Olhinho, realiza o primeiro diagnóstico e o oftalmologista do serviço estadual mais próximo, para verificação dos casos suspeitos. Com o diagnóstico de catarata confirmado, a criança é encaminhada a um dos centros de sua região.
“Montamos uma estrutura de maneira que cada maternidade passasse a ter um AME ou serviço oftalmológico onde crianças com reflexo alterado ou duvidoso pudessem fazer a rechecagem do exame. Isso é importante porque mais de 95% dos exames classificados como alterados ou duvidosos, na verdade são falsos positivos. No recém-nascido é difícil mesmo ver o reflexo vermelho. Nesses centros de rechecagem o oftalmologista tem contato direto conosco. Tudo via CROSS chegando até nós para o tratamento precoce”, explica.
Por meio do projeto do professor Lottelli, médicos pediatras e equipes das redes básicas de saúde do Estado foram capacitados para identificarem precocemente a catarata infantil. “Por ser uma doença rara, com incidência de 1 para cada 2.500 nascidos vivos, isso com o tempo foi se fragmentando. Precisamos reorganizar esses caminhos para que o protocolo seja de maior conhecimento por parte das pessoas e produza resultados para reorganização da rede”, afirma Lottelli.
A calculadora
A partir da criação do protocolo para o tratamento e acompanhamento de crianças com catarata, Lottelli e sua equipe se depararam com um desafio: estabelecer qual o grau da lente que seria introduzida no olho de cada paciente. Esse trabalho é mais complicado em crianças do que em adultos.
“Em adultos, basta medir o tamanho do olho e a curvatura da córnea para determinar a lente a ser introduzida. No caso das crianças, é preciso levar em conta que o desenvolvimento da visão vai do nascimento até os seis anos de vida. Temos que trabalhar nesse período. Se eu coloco uma lente que a deixa sem grau naquele momento, o olho dela vai crescer e quando for adulta ficará com vinte, vinte e cinco graus de miopia. O que se faz é deixar um residual de hipermetropia para que na fase adulta fique com o menor grau possível. E esse residual conseguimos corrigir com uso de óculos”, comenta.
Na época já existiam alguns estudos a respeito do crescimento ocular e estimativas sobre o grau da lente adequado a ser implantado por idade. Um dos primeiros especialistas a trabalhar com esses dados foi o Dr. Scott McClatchey, em 1997. Mas as tabelas ainda se mostravam um tanto imprecisas. Diante disso, Lottelli começou passou a acompanhar as crianças que tinha operado e medir o tamanho do olho e da curvatura da córnea de cada uma delas. Com isso foi criando um banco de dados para tentar prever melhor o crescimento ocular e qual a lente mais adequada para cada caso.
Em 2017, esse estudo transformou-se em sua tese de livre-docência. “Desenvolvemos alguns modelos matemáticos baseados nessas crianças que vinha operando e acompanhando desde 2011. Usei algumas ideias de modelos do Dr. McClatchey para montar o meu modelo matemático. Como ele não tinha crianças com lente dentro do olho, ele vinha medindo seriadamente a refração e com isso tentava estimar o tamanho do globo e a partir disso prever o crescimento. Pensei comigo: eu não preciso estimar o tamanho do globo porque tenho a medida. Vou sair na frente. Vou usar o modelo logaritmo dele, mas de uma forma mais precisa”, explica.
Baseado nisso, Lottelli criou uma calculadora onde a pessoa insere informações como a data de nascimento, o tamanho do olho da criança, a curvatura da córnea e com esses dados estima o tamanho do olho e a curvatura da córnea na idade adulta. A ferramenta auxilia no cálculo para implante de lentes intraoculares (LIOs) em crianças. Essa calculadora hoje está na segunda versão, disponível online. Faz parte de uma central de calculadoras que a Sociedade Brasileira de Catarata disponibiliza em seu site.
Evolução
Em busca de validação externa para o seu modelo matemático, Lottelli voltou aos EUA em 2023 como bolsista Fapesp para desenvolver nova pesquisa na área de Catarata Pediátrica. Permaneceu por um ano na Medical University of South Carolina, onde mais uma vez teve a oportunidade de trabalhar com o Dr. Wilson. Nesse período conseguiu avançar na análise e comparação entre os diferentes modelos de cálculo. “Agora temos esses modelos matemáticos validados, sabemos que funcionam, mas queremos utilizá-los com um número de pacientes muito maior, para avançarmos em novos estudos, analisando por exemplo, se questões como raça e outras variáveis podem influenciar no caso da catarata pediátrica. Algo que com amostras pequenas não é possível identificar”, afirma.
Ao tomar conhecimento sobre o trabalho que Lottelli tem desenvolvido no Brasil, o Dr. McClatchey o procurou. A troca de ideias evoluiu para a proposta de formação de um grupo de especialistas para coleta de dados em nível mundial para reunir conteúdo que torne as calculadoras cada vez mais precisas.
“Dr. McClatchey é uma referência. Fiquei feliz por ele ter gostado do meu modelo matemático. É um privilégio estabelecer esse contato com ele e uma honra ter sido escolhido para compor esse grupo de trabalho tão seleto. A ideia é buscar colaboradores ao redor do mundo para formar um banco de dados grande e assim melhorar a previsão do grau da lente a ser implantado em cada criança”, ressalta Lottelli. O professor da FMB comemora as conquistas alcançadas ao longo dos últimos anos, que transformaram a FMB e o HCFMB em referências para o desenvolvimento de pesquisa e atendimento de catarata pediátrica. “Desconheço outro local que tenha uma estrutura como a nossa. Temos um know-how grande. Hoje acompanhamos mais de trezentas crianças no ambulatório. Eu não dou alta porque uma vez por ano elas voltam para fazer a medida. Pretendo acompanhá-las até completarem vinte e um anos. Um trabalho de longo prazo, mas absolutamente gratificante. Ganhamos visibilidade e estamos fazendo o que a Unesp espera da gente que é internacionalização, contato com outras universidades do exterior, que abre caminhos para novos estudantes que queiram fazer especialização nesses locais”.
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