
Pesquisa analisou mais de 154 mil cirurgias realizadas no hospital entre 2005 e 2022.

Por Jornal da Unesp
Um levantamento inédito feito no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Botucatu (HCFMB), vinculado à Universidade Estadual Paulista, revelou que a ocorrência de parada cardíaca e de mortes durante procedimentos anestésico-cirúrgicos experimentou uma expressiva redução nos últimos 18 anos, caindo cerca de 55%. A queda reflete avanços importantes nas práticas anestésicas e nos protocolos de segurança que ocorreram durante o período.
O trabalho envolveu a análise dos registros médicos de 154 mil procedimentos cirúrgicos realizados de 2005 a 2022 no HCFMB, na cidade de Botucatu, no interior de São Paulo, e foi conduzido como parte da tese de doutorado do anestesiologista Arthur Caus de Morais para o Programa de Pós-graduação em Anestesiologia da FMB. Os resultados foram divulgados em um artigo publicado este ano na revista científica Anaesthesia, uma das mais relevantes para esta área de pesquisa. A mesma edição apresentou um editorial comentando a pesquisa, reforçando o impacto dos resultados apresentados.
Os registros médicos permitiram que o pesquisador calculasse a incidência de parada cardíaca intraoperatória (isto é, que ocorreu durante a execução da cirurgia) e também a mortalidade até 30 dias após a cirurgia. Morais e seus colaboradores também analisaram fatores de risco associados a esses eventos, como idade, presença de outras enfermidades, tipo de atendimento (cirurgia eletiva ou de emergência) e complexidade do procedimento.
A incidência geral de paradas cardíacas ocorridas durante as cirurgias caiu de 34,6 para 15,4 casos a cada 10 mil procedimentos anestésico-cirúrgicos no período estudado. A mortalidade intraoperatória também diminuiu de 22 para 10,5 mortes a cada 10 mil procedimentos anestésico-cirúrgicos. (A expressão mortalidade intraoperatória refere-se aos óbitos que ocorrem com o paciente ainda no centro cirúrgico, sob os cuidados da equipe de anestesia.) “É um indicador que oferece uma avaliação precisa da segurança anestésica e da eficácia da resposta da equipe médica durante o ato anestésico-cirúrgico”, diz Morais.
Os registros permitiram que o pesquisador calculasse a incidência de parada cardíaca intraoperatória (isto é, que ocorreu durante a execução da cirurgia) e de mortalidade até 30 dias após a cirurgia. Além disso, Morais e seus colaboradores analisaram fatores de risco associados a esses eventos, como idade, presença de outras enfermidades, tipo de atendimento (cirurgia eletiva ou de emergência) e complexidade do procedimento.
À luz das informações coletadas, Morais e colaboradores que participaram da investigação concluíram que as principais causas de parada cardíaca identificadas no estudo estiveram ligadas ao estado clínico dos pacientes. As complicações relacionadas diretamente à cirurgia cardíaca responderam por 27% dos casos, seguidas por sepse (20%), ruptura de aneurisma (17%), hemorragia intraoperatória (14%) e trauma (7%). Os 15% restantes foram relacionados a outras causas menos frequentes, incluindo infarto do miocárdio, embolia pulmonar e insuficiência respiratória.
“Muitas vezes lidamos com pacientes em condições muito graves, em cirurgias de alta complexidade, o que aumenta o risco de eventos como a parada cardíaca”, diz Morais. “Mesmo assim, conseguimos reduzir bastante a ocorrência desses episódios. Isso mostra o impacto direto de medidas simples, como o preparo adequado das equipes, o monitoramento dos pacientes e a adoção de checklists e protocolos de segurança.”
Para Múcio Tavares de Oliveira, cardiologista e professor do Instituto do Coração da Universidade de São Paulo (Incor/FMUSP), o estudo conduzido por Morais e seus colaboradores impressiona pela amplitude e pela obtenção de dados detalhados. “Trabalhos como esse são muito importantes e corajosos, porque examinam as entranhas de uma instituição, proporcionando muitas oportunidades de crescimento”, disse o médico.
Oliveira diz que, de modo geral, vários fatores contribuíram para a queda na incidência de mortalidade durante cirurgias cardíacas na última década. Entre eles estão a melhoria dos fármacos utilizados na indução e manutenção da anestesia, a evolução tecnológica dos equipamentos usados para monitorar o ritmo cardíaco, a taxa de oxigenação do sangue e outros parâmetros, e também o uso de algoritmos de alarme mais precisos.
Ele elenca também o desenvolvimento de protocolos de segurança anestésica e de avaliação do risco de complicações (como infarto do miocárdio e risco de arritmias), incluindo a utilização de escores bem validados que podem levar a intervenções preventivas antes mesmo das cirurgias. “Em países mais desenvolvidos o acesso a essas melhorias é maior, além de a população desfrutar de melhores condições de saúde, e haver mais controle de doenças de base”, diz.
Risco de morte
O estudo conduzido no HCFMB alerta também para o fato de que o risco de morte após a ocorrência de uma parada cardíaca intraoperatória ainda é muito alto. Cerca de 64% dos pacientes que sofreram esse tipo de complicação não sobreviveram, um índice elevado, indicando a necessidade de estratégias adicionais para reduzir a mortalidade associada a esses episódios.
O orientador da pesquisa, Leandro Gobbo Braz, docente do Departamento de Especialidades Cirúrgicas e Anestesiologia e vice-coordenador do Programa de Pós-Graduação em Anestesiologia da Faculdade de Medicina de Botucatu, destaca a amplitude do levantamento. “São raros os estudos de longa duração como este, feitos em hospitais públicos, que documentam, com tal nível de detalhamento, os riscos e os desfechos relacionados a cirurgias”, diz Braz, referência no país em segurança do paciente em procedimentos anestésico-cirúrgicos.
De acordo com Braz, o hospital público brasileiro é um ambiente desafiador, porque atende pacientes mais graves e, muitas vezes, com acesso tardio ao sistema de saúde, o que implica uma condição clínica menos favorável quando finalmente chegam ao centro cirúrgico. “Por isso, o fato de termos conseguido reduzir as incidências de paradas cardíacas e de óbitos em mais de 50% ao longo desses anos, mesmo nesse contexto, é muito significativo. Mostra que, mesmo em condições adversas, é possível alcançar resultados positivos com medidas simples e eficazes de segurança.”
Diante desses dados, Morais e Gobbo ponderam que o grande desafio é reduzir a ocorrência de eventos que agravem a condição clínica do paciente para diminuir o risco de parada cardíaca intraoperatória. “A parada cardíaca intraoperatória é um evento raro, porém com mortalidade elevada. A prevenção de fatores que levem a piora clínica pré-operatória do paciente, como o investimento para reduzir o tempo de espera por cirurgias de urgência e emergência, é fundamental para melhorar o atendimento”, dizem os pesquisadores.
Comparação com outros países
O estudo também comparou os dados do hospital brasileiro com os de países com elevado Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), como Estados Unidos, Austrália e várias nações da Europa Ocidental. Nessas regiões, revisões da literatura científica com metodologia semelhante indicam que as incidências de parada cardíaca intraoperatória variam de 5,0 a 8,5 casos a cada 10 mil procedimentos anestésico-cirúrgicos. Já no HCFMB, a média registrada foi duas a quatro vezes maior que a dos países desenvolvidos.
No entanto, na visão dos autores, esse tipo de comparação exige cautela, já que envolve realidades hospitalares e perfis de pacientes muito diferentes. Os centros cirúrgicos dos países de IDH elevado contam, em geral, com infraestrutura mais moderna, maior número de profissionais, tecnologias avançadas de monitorização e recursos de resposta rápida, enquanto o HC-FMB atende, prioritariamente, pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS). “Nosso hospital recebe casos muito graves, muitas vezes em situações de emergência ou com doenças avançadas. Mesmo assim, conseguimos reduzir bastante as taxas de complicações, o que mostra que é possível avançar mesmo num cenário de maior complexidade”, diz Morais.
Outra contribuição do estudo foi mostrar que, embora as complicações anestésicas ainda ocorram, respondem atualmente por uma parcela muito menor das causas de parada cardíaca durante procedimentos anestésico-cirúrgicos. Houve uma queda de 3,35 para 0,49 paradas cardíacas somente pelo fator anestésico por 10 mil procedimentos anestésico-cirúrgicos, com uma redução de 85%.
A maioria dos casos analisados estava relacionada ao quadro clínico prévio dos pacientes e à complexidade dos procedimentos cirúrgicos. “Quebra-se, com isso, o estigma que existia no passado de que os riscos da anestesia eram exclusivamente culpa do procedimento anestésico”, observa Braz. “Atualmente, a ocorrência de parada cardíaca desencadeada somente por fatores anestésicos no HCFMB é semelhante e, por vezes, menor do que a de países desenvolvidos. Isso também demonstra a evolução e a segurança atual da anestesia em nosso hospital.”
A comparação com dados de outras nações é importante porque dimensiona os desafios específicos dos hospitais públicos brasileiros. “Não estamos falando de um ambiente de saúde suplementar, com pacientes de menor risco. O nosso contexto é outro, e ainda assim estamos conseguindo resultados cada vez melhores”, diz Morais.
Os pesquisadores destacam que o estudo incentiva a realização de investigações semelhantes em mais hospitais públicos brasileiros. “Existem muitas lacunas de dados na nossa realidade. Precisamos de mais pesquisas que revelem os desafios e também os avanços que temos conseguido no dia a dia dos hospitais do SUS. Esse estudo mostra o caminho: é possível melhorar muito a segurança do paciente, mesmo nas condições mais adversas, com ciência, organização e trabalho em equipe”, diz Morais.
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