Pesquisa da Unesp aposta em colaboração com pescadores para salvar espécie de tubarão da extinção

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Pesquisa da Unesp aposta em colaboração com pescadores para salvar espécie de tubarão da extinção 28 outubro 2025

Apesar de ataques esparsos, não existem evidências de que esses animais cacem humanos ativamente para se alimentar.

Malena Stariolo – Jornal da Unesp

O filme Tubarão (1975), de Steven Spielberg, foi um dos grandes responsáveis por consolidar, no imaginário popular, a imagem dos tubarões como predadores implacáveis. Essa visão, porém, está distante da realidade: apesar de ataques esparsos, não existem evidências de que esses animais cacem humanos ativamente para se alimentar. Muitas das espécies que vivem próximas à costa, na verdade, só reagem à nossa presença quando se sentem ameaçadas.

É o caso do tubarão-mangona —- que, apesar da aparência feroz, com fileiras de dentes estreitos e afiados visíveis mesmo de boca fechada, não apresenta comportamento agressivo. Até o nome combina com o temperamento: a palavra “mangona” significa “preguiça” ou “moleza”.

Os habitats favoritos da espécie, próximos à costa, são um dos fatores que a tornam presa frequente de pescadores, e características biológicas como a maturação sexual tardia e baixa fecundidade dificultam sua reprodução, o que faz o mangona figurar na Lista Vermelha da IUCN como uma espécie criticamente ameaçada. No Brasil, sua pesca, retenção e comercialização são proibidas desde 2014, mas é comum que acabem capturados acidentalmente por armadilhas montadas para prender outros animais.

Em Iguape, no litoral sul de São Paulo, o biólogo Santiago Montealegre Quijano, docente da Faculdade de Ciências Agrárias do Vale do Ribeira da Unesp, trabalha há três anos com pescadores locais. O projeto sediado no câmpus de Registro busca conscientizar sobre a presença e importância do mangona — e, ao mesmo tempo, desenvolver alternativas de pesca mais seguras, para evitar a captura acidental do animal.

Intitulado “Encontrando esperança para o tubarão-mangona (Carcharias taurus), espécie criticamente ameaçada de extinção, no Sul do Brasil”, o projeto contou com financiamento do Fundo de Natureza Príncipe Bernhard (PBNF), que apoia iniciativas de atuação local focadas na conservação de espécies ameaçadas. Em colaboração com um grupo de pescadores, Quijano testou um novo método de pesca, substituindo as tradicionais redes (nas quais os tubarões acabam presos acidentalmente) por covos — um tipo de armadilha subaquática posicionada no leito marinho.

O desaparecimento do tubarão-mangona

O tubarão-mangona habita áreas costeiras por todo o mundo: além da Antártica, a única área onde a espécie não está presente é a costa Oeste das Américas, banhada pelo Pacífico. No lado Atlântico do continente, ele é encontrado desde o Sudeste brasileiro até a Argentina, dentro de uma área denominada “mar patagônico”. Este é um grande ecossistema marinho transnacional, que teve sua existência oficialmente reconhecida em 2004, com a criação do Fórum para a Conservação do Mar Patagônico e Áreas de Influência, organizado pela Wildlife Conservation Society (WCS) e a BirdLife International (BLI).

O Fórum reúne pesquisadores e representantes de ONGs para elaborar planos de conservação. Dentre as iniciativas já completadas, está o mapeamento das espécies presentes na área, juntamente com a análise do seu estado de conservação, do qual Quijano participou. “Ao longo do trabalho, constatamos que muitas espécies atualmente estão gravemente ameaçadas”, diz Quijano. “O grau de vulnerabilidade e o risco de extinção que estão enfrentando aumentou sua relevância. Foi o caso, por exemplo, do tubarão-mangona.”

O relatório, elaborado entre 2017 e 2020, apresenta um cenário crítico: estima-se que a população de tubarões-mangona caiu 80% nos últimos 74 anos. No Brasil, essa espécie praticamente desapareceu entre as décadas de 1980 e 1990: a captura diminuiu 97%, não porque a atividade pesqueira tenha cessado, mas porque havia pouquíssimos tubarões para pescar.

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A proibição foi um primeiro passo para a preservação do mangona no Brasil, mas a história é outra nos países vizinhos. Na Argentina, por exemplo, a pesca esportiva é permitida desde que o animal seja solto depois. Entretanto, isso não assegura sua sobrevivência, pois muitos pescadores utilizam anzóis com formato de “J”, que costumam ferir órgãos vitais e condenar o animal à morte mesmo se liberado. No Uruguai, a pesca da espécie ainda é permitida, e de maneira geral sua carne tem entusiastas por todo o Cone Sul.

“O mangona era um prato muito apreciado. Inclusive, muitas pessoas nem sabiam que é um tubarão. Chegam aos restaurantes e pedem por ‘mangona’ diretamente”, lembra Quijano. “Até pouco tempo atrás, nas praias de Santa Catarina, o pessoal enfileirava na areia os mangonas pescados”, diz Renato Freitas, docente da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), com quem Quijano colaborou em uma pesquisa sobre o habitat do tubarão.

A biologia do animal é outro fator que dificulta sua conservação. O Carcharias taurus, nome científico do tubarão-mangona, é a única espécie de tubarão a apresentar canibalismo intrauterino, fenômeno em que embriões maiores se alimentam dos menores e de ovos não fertilizados. As fêmeas têm dois úteros, onde vários embriões se desenvolvem no início. Ao final do processo, geralmente, apenas dois filhotes, um de cada útero, sobrevivem e nascem. A gestação dura entre oito e doze meses.

“A fêmea demora de 8 a 10 anos para atingir a maturidade sexual, e tem uma idade máxima de cerca de 35 anos. Então é um animal muito longevo, mas com uma fecundidade extremamente baixa e reprodução lenta”, explica Freitas, que coordena o Laboratório de Biologia de Teleósteos e Elasmobrânquios (LABITEL).

Uma alternativa às redes

Ainda que a proibição da pesca do tubarão-mangona esteja valendo no Brasil há mais de uma década, isso não impede que o animal acabe preso acidentalmente nas redes usadas para outras espécies, como bagres e robalos. A indicação é liberar o indivíduo sempre que isso ocorrer, mas é comum que o animal se machuque e não sobreviva após a soltura — ou que os pescadores ignorem a orientação e vendam a carne como “cação”, um nome genérico usado para qualquer espécie de tubarão ou arraia.

Os pescadores correm o risco de serem denunciados quando ocorre a pesca acidental, e o equipamento pode ser danificado pelo mangona. “O tubarão acaba atrapalhando a atividade de pesca porque as redes são feitas para peixes menores, então os fios são mais finos. Quando o mangona cai na rede ou morde algum dos peixes presos, ela acaba rasgando e destruindo o equipamento e, infelizmente, esses são encontros comuns na nossa região”, relata Lucas Gabriel, pescador de Iguape que trabalhou junto com Quijano.

Pensando tanto na conservação do animal como em formas de diminuir os problemas enfrentados pelos pescadores, Quijano começou a testar, junto à comunidade, o uso de covos: armadilhas de pesca feitas de malha e posicionadas no solo marinho, com uma isca dentro para atrair os peixes. Eles entram, mas não conseguem sair. Essa é uma alternativa bastante segura, de baixo impacto ambiental e que evita completamente a captura acidental do mangona, já que o animal é muito grande para entrar nas armadilhas.

Ao longo de três anos do projeto, o grupo realizou mais de 30 saídas embarcadas para testar o novo equipamento. Uma vantagem apontada por Quijano é que esse modelo permite conectar várias armadilhas com uma linha — em uma das saídas, os pescadores chegaram a conectar 30 covos. Os covos permanecem submersos por algumas horas e são puxados manualmente de volta para os barcos.

Os testes mostraram que os maiores empecilhos ocorriam no momento em que os covos são recolhidos. A área de pesca analisada, que cobre a região de Iguape e a praia da Juréia, é um estuário, ambiente aquático de transição entre o rio e o mar que se caracteriza pelo solo lamacento. Os covos ali depositados terminavam se enchendo de lama, o que aumentava consideravelmente o peso e dificultava sua retirada.

“A ideia de usar os covos foi maravilhosa. É uma técnica que não agride outras formas de vida e consegue capturar apenas peixes pequenos, sem colocar em risco tartarugas, golfinhos, raias ou tubarões”, diz Lucas. “Porém, na nossa costa o que predomina é a lama no fundo. É difícil encontrar uma região com fundo de cascalho, que são as mais apropriadas para instalar as armadilhas. Isso dificulta o recolhimento dos covos. E é uma pescaria artesanal, puxamos tudo na mão.”

Os covos não vingaram, mas o projeto foi importante para estabelecer um vínculo entre a Unesp e as comunidades tradicionais da região. “Agora, os pescadores passaram a ver a Unesp como um apoio científico, especialmente por compreenderem que estavam sendo injustamente enquadrados por um crime quando ocorria uma captura acidental”, diz Quijano. O pesquisador reforça que, no futuro, pretende testar novos formatos de covos para encontrar soluções que acumulem menos lama.

Por parte dos pescadores, Lucas Gabriel diz que a comunidade se preocupa em liberar os tubarões quando ocorre a pesca acidental. É importante manter o mangona sempre de barriga para baixo, e rasgar a rede o mais rápido possível, evitando longos períodos de estresse. Outro cuidado que vem sendo disseminado entre os pescadores é o de evitar as regiões preferidas do tubarão. “O mangona está presente em toda a Juréia, mas existem locais e épocas do ano que elas estão presentes em maior quantidade”, conta o pescador.

Conhecendo o habitat do Carcharias taurus

Tanto para os pescadores, como para viabilizar políticas públicas e áreas de proteção, mapear os habitats favoritos do tubarão-mangona é importante. Em especial, as áreas em que vivem durante etapas críticas de suas vidas, como o acasalamento, a gestação e o crescimento dos filhotes.

O trabalho realizado por Renato Freitas na UFSC, que contou com a colaboração de Quijano, reuniu dados de ocorrência do tubarão-mangona nas costa do Brasil, da Argentina e do Uruguai para mapear o habitat do animal e entender seu fluxo migratório. A pesquisa contou com um extenso banco de dados, obtido a partir de avistamentos da espécie reportados por pesquisadores, pescadores artesanais e indústria pesqueira.

Os registros vão desde o Espírito Santo até o sul da Reserva Natural Bahía San Blas, na Argentina, e abrangem um período de 31 anos, entre 1993 e 2024. Nesse tempo, ocorreram 383 avistamentos — 192 no Brasil, 108 no Uruguai e 83 na Argentina.

“Esse trabalho veio de uma demanda de saber mais sobre a espécie, que tem avistamentos cada vez mais raros, e conseguir estudá-la sem tirá-la de seu habitat, correndo o risco de danificar a população ainda mais”, conta Guilherme Burg Mayer, doutorando da UFSC sob orientação de Freitas. O estudo foi um dos desdobramentos da pesquisa de doutorado de Mayer e teve seus resultados publicados no artigo “Environmental and spatial modeling of the critically endangered sand tiger shark, Carcharias taurus, in the Southwest Atlantic Ocean”, na revista científica Environmental Biology of Fishes.

Com as informações de ocorrência em mãos, o grupo modelou a distribuição dos tubarões-mangona ao longo do ano e confirmou que a espécie prefere ficar próxima da costa, a distâncias que variam entre 3 km e 16 km. Entre junho e setembro, a maior parte dos avistamentos ocorre na costa uruguaia e em partes da costa argentina. Com a chegada da primavera e do verão, os tubarões sobem até as águas mais quentes do Sudeste brasileiro. O estudo revelou que a espécie tem uma boa tolerância para as mudanças de temperatura: aparece em águas que variam entre 12,3 e 27,9 ºC.

Os principais habitats da espécie estão próximos de estuários, onde deságuam rios. Algumas áreas de destaque são as águas costeiras próximas à desembocadura da Baía de Paranaguá, no Paraná, o sul dos litorais de São Paulo e de Santa Catarina e o litoral norte do Rio Grande do Sul. As regiões de estuário são reconhecidas como berçários da vida marinha por oferecerem alimentação e abrigo a espécies nos estágios iniciais da vida, o que reforça sua relevância para a proteção, não apenas do tubarão-mangona, mas de uma miríade de outras espécies.

“Sabendo das áreas prioritárias, e das variáveis ambientais que são mais importantes para esse animal, nós podemos pensar em proteger as regiões que são priorizadas por essa espécie”, diz Freitas. Entretanto, o docente destaca que, apesar da demarcação de áreas de proteção, como as Unidades de Conservação (UC), serem essenciais, apenas isso não basta para garantir a efetividade dessas zonas. “É preciso fiscalização. O Brasil tem uma legislação ambiental muito boa, mas ainda faltam recursos humanos e financeiros. Apenas delimitar áreas de conservação não é suficiente.”

Quijano diz que é necessário implementar políticas públicas direcionadas diretamente à proteção do tubarão-mangona, como áreas de exclusão completa de pesca, para auxiliar no crescimento populacional da espécie. “Apenas atribuir o status de espécie ameaçada e proibir sua captura e comercialização não irá salvar o tubarão-mangona. Além da pesca continuar de forma acidental, ainda se cria outro problema, que é o fato do pescador passar a ser criminalizado por uma captura acidental.”

Imagem acima: o tubarão-mangona pode atingir até 3 m de comprimento e pesar 250 kg. Crédito: Christopher Mark

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