Metodologia desenvolvida na Unesp de Botucatu irá facilitar identificação de mercúrio em animais e pessoas na Amazônia

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Metodologia desenvolvida na Unesp de Botucatu irá facilitar identificação de mercúrio em animais e pessoas na Amazônia 24 agosto 2023

Docente da Unesp coordena grupo que busca biomarcadores para assinalar contaminação em organismos. Estudo da Fiocruz mostra que um quinto dos peixes consumidos nas grandes cidades amazônicas apresenta níveis do metal superiores aos limites estabelecidos pela Organização Mundial da Saúde.

Malena Stariolo/Jornal da Unesp

Na maior floresta tropical do mundo, os efeitos da intervenção humana no ambiente são cada vez mais intensos e abrangentes, alcançando, inclusive, a escala microscópica. Um exemplo é a intoxicação por mercúrio, que hoje afeta tanto a fauna local quanto as populações que habitam a região.

Uma vez que esteja disponível no ambiente, o mercúrio pode ser incorporado à alimentação dos animais e se agregar à cadeia alimentar, intoxicando as pessoas que consomem peixes que ingeriram mercúrio. Estudo desenvolvido pela Fiocruz junto a instituições amazonenses revelou que os peixes dos principais centros urbanos da Amazônia estão contaminados por mercúrio. A pesquisa, divulgada em maio deste ano, aponta que quase um quinto (21,3%) dos peixes utilizados para alimentação e comercialização apresentaram níveis acima do limite estabelecido pela Organização para Alimentação e Agricultura das Nações Unidas (FAO/WHO) e pela Agência de Vigilância Sanitária brasileira (Anvisa), referente à uma quantidade de 0,5 µg/g (microgramas de mercúrio por grama de peixe).

A presença do mercúrio cada vez mais evidenciada na região está relacionada às atividades de garimpo e, possivelmente, à construção de usinas hidrelétricas, como a de Jirau, localizada no rio Madeira, responsáveis por movimentar o sedimento dos rios onde há mercúrio decantado. É justamente nessa área que têm se concentrado os estudos de um grupo de pesquisadores, coordenados por Pedro de Magalhães Padilha, docente do Instituto de Biociências da Unesp, campus de Botucatu, ao longo dos últimos dez anos.

Por meio de uma técnica inovadora que integra métodos bioquímicos e químicos, Padilha tem buscado maneiras de encontrar potenciais proteínas que sirvam como biomarcadores de mercúrio. Como o nome sugere, os biomarcadores são certos elementos presentes em sistemas biológicos que fornecem informações mensuráveis sobre saúde, doenças ou exposição a fatores ambientais. Por meio de sua identificação, é possível não apenas apontar a presença do mercúrio no organismo como também identificar e localizar as proteínas nas quais o mercúrio está presente.

Balsas de garimpo no rio Madeira, alinhadas em uma estrutura conhecida como “fofoca”. Crédito: Bruno Kelly/Amazônia Real

Segundo Padilha, a motivação para a pesquisa veio da constatação da facilidade com que o mercúrio é absorvido pela vida aquática, e o risco que isso implica para os habitantes da Amazônia. “O consumo de peixes representa a principal fonte de contaminação por mercúrio para as populações tradicionais, que têm o pescado como a principal fonte de alimentação proteica”, destaca o pesquisador. Padilha diz que o uso dos biomarcadores permitirá identificar com antecipação a existência de risco de exposição humana ao mercúrio num determinado contexto. “Esse conhecimento possibilitaria a adoção de ações preventivas, prevenindo o adoecimento e gastos significativos com saúde”, diz.

Metaloproteômica: química e bioquímica

Embora seja docente do Departamento de Ciências Químicas e Biológicas da Unesp desde 1994, Padilha trabalhou por muitos anos de maneira mais próxima com os estudantes do Programa de Pós-Graduação em Química, em Araraquara, onde explorava sua expertise em química analítica.

“Por volta de 2004 uma nova técnica foi introduzida no Brasil, a metaloproteômica. Ela surgiu por volta dos anos 2000, no Japão e, rapidamente, começou a ser utilizada pela comunidade científica. Vislumbrei ali uma oportunidade para começar a desenvolver projetos com os estudantes do campus de Botucatu”, lembra o químico, que desde 2009 conduz estudos nessa linha. O nome da técnica combina dois radicais. O termo “metalo” se refere aos metais, e “proteômica” identifica os conjuntos de proteínas, que são conhecidos como proteomas. Assim, a técnica permite estudar espécies metálicas, como ferro, cobre ou mercúrio, que têm a capacidade de se ligar com macromoléculas, como proteínas ou enzimas.

A associação entre elementos metálicos e proteínas é algo que ocorre rotineiramente nos mais diversos organismos. Em determinados casos, as proteínas passam a desempenhar papéis fundamentais para a vida. É o caso, por exemplo, da hemoglobina, uma proteína presente nos glóbulos vermelhos do sangue que, por meio da sua ligação com o ferro, realiza o transporte de oxigênio no sistema circulatório.

Porém, no caso de outras proteínas que também apresentam o potencial de ligação com metais, os efeitos podem ser menos benéficos ou mesmo tóxicos. É o caso dos metais cádmio, chumbo e mercúrio. Popularmente conhecidos como “metais pesados”, essas espécies não desempenham nenhuma função benéfica para os organismos e são altamente tóxicas. Identificar os sítios, isto é, as partes das proteínas onde pode ocorrer a conexão com as espécies metálicas, e identificar os efeitos suscitados pela ocorrência dessas ligações, é um dos objetivos dos estudos da metaloproteômica.

O mercúrio nos peixes

Inicialmente, Padilha utilizava a metaloproteômica em estudos sobre nutrição de peixes que conduziu no estado de São Paulo. Porém, com o convite do colega Luiz Fabricio Zara, da Universidade de Brasília, em 2011 o químico passou a aplicar seu conhecimento técnico na busca por proteínas que poderiam atuar como possíveis biomarcadores de mercúrio nos peixes do rio Madeira, com auxílio da Fapesp e da Empresa Energia sustentável do Brasil – ESBR, responsável pela hidrelétrica de Jirau. “O Madeira tem um histórico bastante conhecido de contaminação por mercúrio derivado das atividades de garimpo. Esse foi um dos motivadores para selecionarmos esta região para a pesquisa”, conta Padilha.

Com mais de três mil quilômetros de extensão, e conectando os estados de Rondônia e Amazonas, o rio Madeira é um dos principais afluentes do rio Amazonas. Nas últimas décadas, tornou-se palco de intrincadas relações econômicas e sociais que envolvem a atividade de mineração, a construção do complexo hidrelétrico e as comunidades ribeirinhas que vivem ao longo de suas margens. Em 2021, o Madeira ganhou as manchetes de todos os jornais a partir de uma operação na região do Governo Federal contra garimpeiros ilegais que na época mobilizavam mais de 300 balsas aglomeradas em suas águas. Já a atividade de garimpo em terra segue crescendo. Segundo dados publicados pelo Mapbiomas, entre 2007 e 2020 a área de garimpo terrestre aumentou o equivalente a 8200 campos de futebol, quase seis mil hectares.

De maneira geral, a Amazônia concentra 94% da área garimpada brasileira. Estima-se que, deste total, cerca de 50% correspondem a instalações de garimpo ilegal, situadas em Terras Indígenas (TI) e Unidades de Conservação (UC). Ao longo dos anos, os números explodiram: nas últimas três décadas a área de garimpo na Amazônia teve uma expansão de 300% em UCs e de, praticamente, 500% em TIs. Embora o garimpo seja uma das principais atividades responsáveis pela contaminação do rio com mercúrio, a construção das hidrelétricas de Santo Antônio e do Jirau, em 2010, também causou muita preocupação. “Quando se constrói uma hidrelétrica, o ambiente é muito impactado porque todas as características do rio são alteradas. No caso do Madeira, a preocupação era justamente aquelas espécies mercuriais, que estavam depositadas no sedimento de fundo do rio e que, com essa mudança, poderiam ficar disponíveis”, explica o professor.

Além de altamente tóxico, o mercúrio também apresenta um efeito acumulativo, conhecido como biomagnificação. Esse fenômeno ocorre quando há o acúmulo progressivo de uma substância ao longo da cadeia alimentar. Ou seja, as quantidades de mercúrio presentes em um peixe pequeno somam-se àquelas presentes em um peixe maior, que se alimenta do menor, e assim sucessivamente. Dessa forma, peixes carnívoros e maiores tendem a apresentar uma maior concentração de mercúrio do que os de menor porte, ou que simplesmente não se alimentam de outros animais. Por fim, quando uma pessoa se alimenta de um peixe ela consome, também, o mercúrio acumulado ao longo de toda a cadeia.

Pensando nisso, ao longo dos 12 anos de projeto, os pesquisadores voltaram sua atenção para as espécies de peixes mais consumidas na região, como o tucunaré, o tambaqui, a corvina, a piraíba e a dourada, entre outras, e buscam identificar nelas aquelas proteínas nas quais o mercúrio consegue se ligar. Esse conhecimento permite estimar os desequilíbrios que podem ser ocasionados por essas ligações.

Com esse objetivo, o grupo aperfeiçoou a metodologia da metaloproteômica, realizando a pesquisa em três momentos. A partir de amostras do tecido muscular e hepático dos peixes, os pesquisadores fracionaram o proteoma, o conjunto de proteínas do músculo e do fígado para, posteriormente, identificar as proteínas associadas ao mercúrio. Essa etapa permite mapear a presença do mercúrio nos spots proteicos fracionados. Uma vez que isso foi solucionado, o próximo passo envolveu identificar as proteínas associadas ao mercúrio. No artigo “The effects of mercury exposure on Amazonian fishes: An investigation of potential biomarkers”, publicado no periódico científico Chemosphere, o grupo identificou 21 proteínas como potenciais biomarcadores de mercúrio. 

Atualmente, por meio de um projeto financiado pelo CNPq e pelo Ministério da Saúde, os pesquisadores conduzem pesquisas também em humanos. O objetivo é identificar as proteínas associadas ao mercúrio que se expressam tanto nos peixes como nos residentes das populações tradicionais amazônicas. A intenção é conseguir individualizar uma única proteína que apresente a melhor performance como biomarcador.

Fabíola Moreira, que atua no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) e integra o grupo de pesquisa, destaca que o avanço no entendimento dos efeitos do mercúrio sobre espécies aquáticas e em humanos é essencial para desenvolver medidas de mitigação da intoxicação, ou mesmo para reduzir os efeitos desse metal sobre a saúde da população. As populações ribeirinhas e indígenas, por estarem próximas às zonas de garimpo e das hidrelétricas, e por terem nos peixes um elemento essencial para sua alimentação, tendem a ser as mais expostas aos efeitos da contaminação por mercúrio. Nesse sentido, a identificação de biomarcadores também auxilia na determinação de quais populações e grupos estão mais suscetíveis à intoxicação. 

Detalhe do ouro ainda misturado com mercúrio, conseguido após extração do leito do rio.
Crédito: Bruno Kelly/Amazônia Real.

No caso dos seres humanos, diferentemente do que acontece com os peixes, a pesquisa em proteínas acontece a partir de exames de sangue colhido de doadores voluntários. Para realizar a coleta, o grupo emprega uma técnica inovadora, desenvolvida por um colaborador dos Estados Unidos, que utiliza um cartão onde são depositadas três gotas de sangue. Graças à tecnologia usada na sua fabricação, o cartão preserva intactas, durante o transporte da amostra para os laboratórios de análise, as características do sangue, sem necessidade de resfriamento. “Uma possível aplicação futura dessa metodologia pelo SUS seria coletar o sangue com esse cartão e enviar para análise, que determinaria se a proteína que atua como biomarcador está ou não com aumento de expressão”, conta Padilha.

A primeira etapa do estudo com humanos na região de Jirau (RO) foi finalizada neste mês. A perspectiva é que até o final do projeto, previsto para 2025 e que também está sendo desenvolvido com voluntários da população ribeirinha do rio Negro (AM), o grupo apresente a proteína com a melhor performance como biomarcador, para que a descoberta possa ser aplicada em programas do Ministério da Saúde voltados para prevenção e tratamento de intoxicação por mercúrio.

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