A história de Francisco e Emília

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A história de Francisco e Emília 02 maio 2020

Por Carlos Magno Castelo Branco Fortaleza

Foto. Ruínas da casa de pau-a-pique em Fronteiras-PI, em que viveu Francisco de Paula Fortaleza durante a infância.

Aos que empreenderam heroicamente a leitura da primeira parte de Os Sertões, de Euclides da Cunha, a paisagem não causará espanto. O único verde que se encontra em meio aos arbustos secos está nos cactos ou em folhas de umbuzeiro. Ali, na zona rural do município de Fronteiras-PI (coerentemente, fazendo fronteira com o Ceará e o Pernambuco), Francisco viveu toda sua infância. Recebeu o nome de um obscuro santo eremita, São Francisco de Paula. A alcunha do seu trisavô, Antônio Rodrigues (“o Fortaleza”) transformou-se em sobrenome. Vivia em casa de pau-a-pique, da qual ainda restam as ruínas (foto). Em meados da década de 1940, apresentou osteomielite de tíbia direita. Foi tratado com curetagens por um médico rural kafkiano. Ainda hoje recorda sua mãe chorando e recolhendo fragmentos de osso no curativo.

Seu pai era o primeiro Emiliano Fortaleza, nome que se repetiu por gerações tais como os “Aurelianos Buendías” de Gabriel García Márquez. Fleumático, embora quase analfabeto, queria que todos os filhos estudassem. O seminário católico era um caminho fácil, e para lá enviou dois filhos. Porém Francisco desistiu da carreira eclesiástica, e foi viver em Teresina-PI, onde estudava e se sustentava com aulas particulares. De lá – quiçá por uma atração onomástica – mudou para Fortaleza-CE, onde foi admitido no Liceu, a mais renomada escola pública do Estado. Para manter-se, trabalhava como office-boy em um jornal. Ali, em uma brincadeira com um amigo, foi acidentalmente atingido por um tiro de rifle na face. Em plenos anos 1950, permaneceu meses entre a vida e a morte.

O episódio trágico teve um desfecho peculiar. Emília Castelo Branco (filha de um pequeno proprietário de terra) resolveu ajudá-lo com os estudos. Ele a convenceu a desistir de agronomia e prestar medicina. Ambos estudaram juntos, e foram aprovados na Universidade Federal do Ceará. Graduaram-se em 1966. Francisco – que nunca foi afeito a rock’n’roll – não consegue ouvir Eleanor Rigby, dos Beatles, sem lembrar que esta música estava nas rádios no período de sua formatura.

Todo o resto da história pouco difere de outras: casaram-se e tiveram três filhos. Viveram por algum tempo em uma kitchenette na Liberdade, em São Paulo-SP, onde fizeram suas especializações (ela em anestesiologia, ele em ginecologia). Com mais de 80 anos, ambos continuavam trabalhando na capital cearense…

and then came the pandemics. Francisco e Emília se refugiaram no mesmo ermo perdido na caatinga de Fronteiras-PI. Numa modesta casa de alvenaria, a 500m das ruínas da velha casa de pau-a-pique.

A vida tem desses ciclos. Em 02 de Maio de 2020, Francisco de Paula Fortaleza completa 82 anos, lúcido e ativo, mantendo quixotescamente um pomar irrigado em meio à terra seca. Emilia (80 anos) lê compulsivamente qualquer coisa – da Bíblia a Madame Bovary. Francisco, que viu surgir a televisão e a internet, sente falta das redes sociais. De comunicação, só têm um telefone fixo.

São duas pessoas comuns, dois “pontos no holograma”, para usar a expressão de Edgar Morin. São também um exemplo de pessoas que fugiram das cidades com medo da peste, tais quais aquelas descritas por Daniel Defoe, no seu Journal of the Plague Year, ou por Bocaccio no Decameron. E aqui escrevo – eu também, minúsculo ponto no holograma – para ressaltar, como Albert Camus, o que se aprende em meio às catástrofes: que há nos homens mais coisas a admirar que a desprezar.

Há um aniversário, há um “dia das mães” em que não consigo dar o merecido abraço, o necessário agradecimento. Mas posso dedicar a Francisco e Emília todo meu suor e sangue, meu esforço constante e meu amor pela humanidade.

Carlos Magno Castelo Branco Fortaleza é Médico Infectologista e Professor da Faculdade de Medicina de Botucatu (Unesp). Integra o Centro de Contingência do Coronavírus criado pelo governo do estado

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