Professor do Departamento de Ciência Florestal, Solos e Ambiente da Unesp, campus de Botucatu, explica que no caso da Mata Atlântica a coleta de amostras deveria ocorrer a uma profundidade de 1m.
Marcos do Amaral Jorge/Jornal da Unesp
Os mercados de crédito de carbono surgiram no cenário internacional nas últimas décadas como um dos mais promissores instrumentos para mitigar a mudança climática causada pela emissão de gases do efeito estufa. Em sua essência, esse mercado articula diferentes atores e países de forma a possibilitar que as empresas que emitem carbono em suas atividades possam compensar essa emissão a partir da aquisição de créditos gerados por processos e atividades que capturem carbono, em quantidades equivalentes às liberadas pelas empresas. Nesta complexa equação, é essencial que haja uma metodologia certeira para estimar o carbono que é retirado da atmosfera e armazenado de diversas formas. O processo de regeneração florestal, por exemplo, devido à sua capacidade de estocar carbono, surge como um instrumento possível para a concessão desses créditos, e atualmente já existem empresas que compensam suas emissões por este caminho. Agora, um novo estudo, que envolveu a participação de docentes da Unesp e da Itália, questiona os métodos usados atualmente para desenhar essas estimativas, e propõe uma nova forma para o cálculo, concebida para as características particulares das florestas tropicais.
Hoje, as principais empresas certificadoras mundiais empregam praticamente a mesma metodologia, que é recomendada também pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), da ONU. Mas os autores do estudo executaram variadas análises de diferentes perfis de fragmentos da Mata Atlântica e concluíram que essa abordagem ignora as particularidades dos solos que estão sob as florestas tropicais. O resultado é que as avaliações que estão embasando as transações entre compradores e vendedores de créditos correspondem a apenas uma fração do montante de carbono que a floresta realmente captura. Como remédio, eles propõem o aumento da profundidade da coleta da amostra e o uso de equipamento mais preciso para o cálculo do carbono no solo. Os resultados da pesquisa foram publicados na revista Scientific Reports.
É preciso ir mais fundo
Um dos pontos centrais da metodologia que é objeto de crítica por parte dos pesquisadores é a orientação por parte do IPCC para que a coleta de amostras alcance uma profundidade de, no mínimo, 30cm a partir do sol. No caso da metodologia aplicada pelas certificadoras, tornou-se padrão recolher apenas os sedimentos situados entre a superfície e os 30 cm de profundidade. Os estudiosos argumentam que o material colhido até 30cm de profundidade não é suficiente para computar a quantidade de carbono no solo e sugerem a ampliação para um metro de profundidade. “A medida de 30cm é a mais fácil e adequada para a zona temperada, onde estão os países europeus e os Estados Unidos, porque os solos deles são mais jovens que os solos tropicais”, diz o engenheiro florestal Iraê Guerrini, um dos autores do artigo. “Por serem solos recentes, existem rochas próximas da superfície do solo que dificultam a coleta de amostras. Nesses ambientes, essas rochas ainda estão sofrendo ação de intemperismo, dos microrganismos e mesmo do sistema radicular das árvores. Esses fatores, ao longo de milhões de anos, transformam a rocha em solo”, aponta.
Guerrini, que é professor do Departamento de Ciência Florestal, Solos e Ambiente da Unesp, campus de Botucatu, explica que no caso da Mata Atlântica a coleta de amostras deveria ocorrer a uma profundidade de 1m. Esta mudança não implica uma maior complexidade ou dificuldade para o processo de coleta, mas se traduz em diferenças bastante relevantes na quantidade de carbono observada no resultado final. “Nas análises dos resultados, nós constatamos uma variabilidade que chegou a até 100% de aumento de carbono em relação às amostras de 30 cm de profundidade, com uma média em torno de 40%”, diz Guerrini. “Os resultados variam de acordo com o tipo de floresta, tipo de solo, entre outros atributos, mas, para a quantificação e sua transformação em créditos de carbono, essa diferença é importante”, diz.
De forma geral, existem duas formas de operação do mercado de créditos de carbono: o mercado voluntário e o mercado regulado. O voluntário é o único em vigor no país atualmente, e consiste na aquisição de créditos por empresas emissoras de carbono sem uma obrigatoriedade legal. A compensação é feita por conta própria, na maior parte das vezes motivada por políticas internas de responsabilidade socioambiental.
O mercado regulado de carbono, cujo projeto de lei para sua criação encontra-se atualmente em tramitação no Congresso Nacional, envolve o estabelecimento de um teto de emissões para empresas com emissão intensiva de carbono, de forma que essas empresas possam compensar o excedente comprando créditos. No primeiro caso, a integridade dos créditos é atestada por empresas certificadoras, na maioria das vezes internacionais. No mercado regulado, a ideia é que essa responsabilidade fique com órgãos reguladores federais.
Em ambos os casos, o carbono estocado no solo pelas florestas em processo de regeneração pode ser negociado como crédito. Na visão dos pesquisadores, entretanto, é fundamental que a metodologia que calcula esse carbono esteja de acordo com as características locais. “O que estamos propondo não é uma forma de beneficiar o Brasil e os demais países tropicais que possuem florestas. Queremos ser justos. As florestas tropicais são diferentes. Nossas florestas têm uma variabilidade muito grande, abrigam a maior biodiversidade do mundo”, afirma Guerrini.
Método tem menor impacto ambiental
Outra proposta de melhoria na metodologia apontada pelos pesquisadores diz respeito ao método usado para quantificar o carbono na amostra. Atualmente, o mais utilizado é o método Walkley-Black, que determina o teor de matéria orgânica no solo por meio da oxidação da amostra com uso do dicromato de potássio. A crítica ao método é que, além de ser pouco preciso, envolve o uso de substâncias tóxicas que podem fazer mal à saúde humana e ao meio ambiente.
Em contraposição, os cientistas recomendam o uso do Analisador Elementar (CHN Elemental Analyser). Ele pode fornecer resultados mais precisos porque detecta todas as formas de matéria orgânica presentes por meio da queima da amostra a altas temperaturas, além de ser mais seguro, apresentar resultados replicáveis e evitar o contato com produtos perigosos. Por outro lado, explica Guerrini, o custo do aparelho pode ser impeditivo: sua aquisição custa aproximadamente US$ 150 mil, e o custo da análise pode ser até cinco vezes mais caro do que o método Walkley-Black. Para os autores, tal problema pode ser contornado por meio do estabelecimento de colaborações entre laboratórios e grupos de pesquisa bem equipados com parceiros em países com menor disponibilidade de recursos,
O trabalho analisou amostras de solo retiradas da fazenda experimental Lageado-Edgárdia, pertencente ao campus de Botucatu, cuja área total é superior a 2.500 hectares e que inclui uma área de preservação ambiental. No local, foram escolhidos quatro perfis diferentes de florestas estacionais semideciduais de Mata Atlântica, que variavam de acordo com grau de regeneração e de interferência humana, além de um fragmento marcado pela transição entre Mata Atlântica e Cerrado, que também sofreu intensa supressão vegetal por desmatamento, pecuária e outras atividades antrópicas. As amostras foram então analisadas e comparadas de acordo com a profundidade em que foram coletadas e o método de quantificação do carbono.
Quando comparados os dois métodos de análise, os resultados apontaram uma quantidade 40% maior de carbono com o uso do CHN Elemental Analyser, em comparação com o método Walkley-Black, sendo a maior diferença (99%), registrada nas amostras coletadas em fragmentos de floresta estacional semidecidual primária perturbada, uma formação caracterizada por distúrbios como extração de madeira e incêndios nos anos 80, mas onde não foram observadas alterações relevantes do uso do solo.
Quando comparadas as profundidades, os pesquisadores observaram que, em média, 58% do carbono estava retido nos primeiros 40 cm do solo, enquanto os 42% restantes estavam entre 40 cm e um metro de profundidade. Para os autores do artigo, ignorar as amostras situadas entre 30 cm e 1 metro de profundidade implica ignorar metade da quantidade de carbono estocado no solo. Os resultados também concluíram que, entre os diferentes perfis de fragmentos florestais, aqueles mais preservados e com menores intervenções humanas apresentaram as maiores quantidades de carbono estocado no solo.
No momento em que o projeto de lei que viabiliza a criação de um mercado regulado de carbono no Brasil se aproxima das últimas etapas do trâmite no Congresso Nacional, a expectativa do professor Guerrini é que o texto final contemple metodologias que calculem adequadamente o carbono estocado no solo das florestas tropicais. “O acréscimo de outras metodologias foi uma das mudanças fundamentais aprovadas pela Câmara no final do ano passado, e agora o texto está em debate no Senado. A gente espera que essa proposta de incluir metodologias que sejam adaptadas às regiões tropicais seja mantida na versão final do projeto de lei”, diz Guerrini.
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