Estudo da Unesp de Botucatu mapeia adultos transgêneros e não-binários no Brasil

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Estudo da Unesp de Botucatu mapeia adultos transgêneros e não-binários no Brasil 14 novembro 2021

Grupo chega a quase 3 milhões de indivíduos, e está igualmente presente tanto nas capitais quanto nas cidades do interior. Dados do trabalho, pioneiro na América Latina, podem ajudar a desenvolver políticas de saúde voltadas para essa população

Uma pesquisa realizada na Faculdade de Medicina de Botucatu (FMB) estimou que a proporção de indivíduos identificados como transgêneros ou não-binários na população adulta brasileira é de aproximadamente 2%. O levantamento, o primeiro deste tipo realizado na América Latina, ouviu seis mil pessoas em 129 municípios de todas as regiões do país. Para os pesquisadores envolvidos no trabalho, os resultados reforçam a urgência de políticas públicas de saúde voltadas para estes grupos, que em números absolutos chegam a quase 3 milhões de indivíduos.

Embora levantamentos desta natureza ainda sejam poucos na literatura mundial, os números encontrados pela equipe da Unesp estão em linha com estudos similares realizados, por exemplo, nos Estados Unidos. Outro ponto que chamou a atenção dos pesquisadores é o fato de as proporções serem praticamente as mesmas em todas as regiões do país.

Para o médico psiquiatra Giancarlo Spizzirri, um dos méritos do trabalho é mostrar que se trata de uma parcela relevante da população e, dessa forma, pode colaborar para tirar esses grupos da invisibilidade. “Pensando nas Ciências da Saúde, e acho que isso pode ser estendido para outras áreas do conhecimento, discute-se pouco as questões da diversidade de gênero e orientações sexuais”, argumenta o autor principal do artigo publicado na Scientific Reports.

“Do ponto de vista médico, isso é relevante porque existem necessidades que são particulares desse grupo de indivíduos”, afirma o médico, que também integra o Programa de Estudos em Sexualidade (ProSex) do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP e atua há 25 anos na área.

“Acho importante as escolas médicas investigarem essas questões, e também ensinar, por exemplo, como tratar ou como abordar essas pessoas”, diz Giancarlo Spizzirri.

O desafio de identificar as diversas identidades de gênero

Os resultados da pesquisa apontam que pessoas identificadas como transgênero representaram 0,69% da amostra, enquanto indivíduos não-binários representaram 1,19%. Cabe mencionar que transgênero é um termo guarda-chuva descreve pessoas que se identificam com um gênero incongruente ou diferente daquele que lhes foi atribuído no nascimento. Já o termo não-binário tenta descrever aqueles indivíduos que sentem que sua identidade de gênero se situa fora das identidades masculina e feminina, ou entre elas. O termo cisgênero, por sua vez, diz respeito à pessoa cujo identidade de gênero é idêntica ao sexo atribuído no nascimento. Para Giancarlo, o maior número de não-binários, em comparação com os transgêneros, é um fenômeno observado em pesquisas semelhantes realizadas no exterior. Provavelmente, isso se deve ao fato de que essa terminologia inclui uma série de domínios dentro do leque de diversidade de gênero.

Os pesquisadores estão cientes de que os dois termos adotados na pesquisa não são capazes de abranger todas as diferentes identidades de gênero, e seria muito difícil contemplar essa diversidade na elaboração de um questionário. Outra dificuldade seria considerar a autodeclaração nas respostas. “Quando no teste piloto tentamos fazer uso da autodeclaração, boa parte da população não compreendia o que essas terminologias expressam, seja a definição de cisgenero, transgênero, heterossexual, etc.”, aponta Giancarlo. 

Para a professora Maria Cristina Pereira Lima, da FMB-Unesp e também autora do artigo, um dos grandes desafios do projeto foi a construção do questionário. “Tivemos que elaborar perguntas que aumentassem a nossa sensibilidade para as pessoas não cisgênero, no intuito de tentar captar quem não se encaixasse nessa categoria dicotômica de masculino ou feminino”, afirma a docente, que também é médica psiquiatra. Além de ser sensível às diversas identidades de gênero e não fazer uso de terminologias, o questionário tampouco poderia ser muito extenso, uma vez que foi aplicado em vias públicas de grande circulação e, portanto, não deveria tomar muito do tempo dos respondentes.

A aplicação dos questionários foi conduzida pela equipe do instituto de pesquisa Datafolha, entre os meses de novembro e dezembro de 2018 e foi estruturada em duas partes. A primeira contemplou dados sociodemográficos enquanto a segunda abordou questões específicas da identidade de gênero dos indivíduos entrevistados.

Nas capitais ou no interior, proporção de indivíduos é a mesma

Nos dados sociodemográficos, o número de indivíduos transgênero e não-binários  obedeceu a proporção da população de cada região do país. Ao mesmo tempo, não foi notada diferença significativa entre os dados coletados nas capitais e nas cidades do interior. “Esse dado me surpreendeu. Pensei que iríamos encontrar mais diversidade de gênero nas capitais, onde supostamente haveria mais aceitação. Já os dados por região mostram que estes grupos estão homogeneamente distribuídos pelo Brasil”, afirma Giancarlo, reforçando a necessidade de se “interiorizar” a atenção médica a trans e não-binários, hoje mais localizada nos grandes centros.

O levantamento apontou ainda que as pessoas transgênero são, em média, mais jovens (32,8) que as cis gênero (42,2) ou as não-binárias (42.1). Giancarlo explica que este dado foi observado em outros trabalhos, mas ele também pode revelar outras razões. “Devemos lembrar que o Brasil é o país com os piores índices de violência para pessoas transgênero, segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), e infelizmente essa média de idade inferior pode estar relacionado com uma menor expectativa de vida dessas pessoas”, aponta.

Ainda que a porcentagem da população identificada como transgênero e não-binário esteja em linha com outros levantamentos realizados no exterior, alguns números chamaram a atenção dos pesquisadores. Um deles aponta que 85% dos homens trans afirmaram já terem sentido sofrimento ou angústia em relação ao próprio corpo, entre as mulheres trans, esse sentimento foi apontado por 50% das entrevistadas. ”São quase dois milhões de pessoas que estão ou estiveram sofrendo por conta da relação com o próprio corpo, isso sem mencionar outros sofrimentos decorrentes da discriminação ou mesmo da violência física”, argumenta Maria Cristina. 

A pesquisa publicada pelos pesquisadores é o início de um trabalho que pretende desenvolver uma amostra ainda mais representativa da população LGBTQIA+, de forma a oferecer informações que respaldem o desenho de políticas públicas para estes grupos.

Por Marcos do Amaral Jorge/Jornal Unesp

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