Tamanduá-bandeira será o primeiro de sua espécie a ser retornado à natureza segundo a metodologia da soltura branda. Iniciativa é fruto de parceria entre o CEMPAS e a ONG Instituto de Defesa da Fauna.
Eduardo Geraque/Jornal da Unesp
Em 2022, o Centro de Medicina e Pesquisa em Animais Selvagens (Cempas) da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia (FMVZ) da Unesp, campus de Botucatu, recebeu um novo habitante: Jorginho, um tamanduá-bandeira resgatado da natureza após um atropelamento.
Jorginho residiu na instituição durante 16 meses. Lá, completou seu ciclo de crescimento e agora se prepara para outro passo importante. Em abril, ele deve se tornar o primeiro indivíduo da sua espécie a ser retornado ao ambiente natural segundo a metodologia chamada de soltura branda.
Desde dezembro, a casa do tamanduá-bandeira – espécie em risco de extinção no Brasil por diversos fatores, que vão da perda de habitat à caça – é um recinto de 400 metros quadrados construído especialmente em uma fazenda na região de Pardinho, a 30 km de Botucatu.
Nestes meses, Jorginho incluiu na dieta cupins e formigas, num preparativo para seu retorno ao seu ambiente original. Aos poucos, os insetos substituem as rações que constituíram a base de sua alimentação desde sua chegada ao Cempas. A boa notícia é que ele está se adaptando bem ao cardápio natural, e obtendo um significativo ganho de massa muscular.
Acompanhamento com colete
“O Jorginho chegou aqui em setembro de 2022 nas costas da mãe, que havia sido atropelada em uma estrada na região do Lajeado”, diz Gabriel Correa de Camargo, médico-veterinário do Cempas e aluno de mestrado da Unesp em Botucatu. A mãe não sobreviveu, e os veterinários se viram diante do desafio de promover a sobrevivência da cria. “O principal cuidado que adotamos foi alimentá-lo com fórmulas específicas, uma vez que não podia mais mamar na mãe”, diz Camargo.
A avaliação dos pesquisadores é que a intervenção se mostrou extremamente eficaz, o que pode ser visto pelos indicadores de saúde. Quando chegou ao Cempas junto com sua mãe, ele pesava 5kg. Quando deixou as dependências da Faculdade de Medicina Veterinária de Botucatu, em dezembro de 2023, seu peso já havia chegado aos 35kg.
Desde 2020, a ONG Instituto de Defesa da Fauna (IDF) estabeleceu uma parceria com o Cempas envolvendo os cuidados com os tamanduás-bandeiras. Só em 2023 foram levados cerca de 30 indivíduos ao Cempas, muitos deles filhotes encontrados ao lado de mães mortas. Rogério Zacariotti, diretor-científico do IDF, explica as diferenças entre as metodologias mais usuais de soltura e o novo método em uso com Jorginho.
“Na chamada soltura ‘hard’, simplesmente se abre a caixa e o animal é praticamente largado na natureza. Neste método que chamamos de soltura branda, e será a primeira vez que vamos fazer isso, há todo um período para a adaptação do animal, até que o recinto seja aberto e ele possa ir para a natureza”, diz. Como um cuidado adicional, depois de solto o animal ainda será monitorado por mais dois anos, por meio de um colete com transmissor.
A parceria entre o Cempas e o IDF envolve a participação da Agropecuária Santa Fé, propriedade rural que também se destaca por suas ações ligadas à sustentabilidade, como o uso de controle biológico nas áreas de plantio, o cuidado com seus recursos hídricos e o zelo pelas áreas de preservação permanente. Tudo isso pesou para a sua escolha para a construção do recinto onde Jorginho reside atualmente.
Zacariotti enumera outros elementos que favorecem a escolha da fazenda para abrigar animais que virão a ser soltos, como a distância das principais rodovias, o que diminui os riscos de atropelamento, e a proximidade de uma área de proteção ambiental de bom tamanho. “Não estamos soltando o animal para que ele fique num fragmento florestal sem conexão. A ideia é que ele se disperse a partir daqui e ganhe uma área de vida em um ambiente que é salutar”, diz.
Reverter ameaça de extinção
Ele diz que o objetivo maior do projeto é reverter a tendência de extinção do tamanduá-bandeira no Estado de São Paulo. Uma das inspirações vem de uma iniciativa conduzida na Argentina. Lá, um programa ativo há 15 anos já retornou à natureza vários exemplares da espécie, ainda que não pela metodologia de soltura branda.
O sucesso dos argentinos pode ser atestado pelo primeiro registro de um tamanduá-bandeira do lado de cá da fronteira, no Estado do Rio Grande do Sul, após 130 anos sem avistamentos. “Agora existe na Argentina uma população mais bem estruturada”, explica Zacariotti. “O projeto deles foi o primeiro da América Latina, por causa da distribuição do tamanduá.
O nosso aqui em São Paulo é o segundo, e hoje também temos iniciativas semelhantes no Triângulo Mineiro e no Pantanal.” No Centro-Oeste do Brasil, o projeto em andamento visa retornar à natureza parte dos animais que ficaram órfãos ou bastante machucados, após as grandes queimadas de 2020, quando 30% do bioma sucumbiram e aproximadamente 17 milhões de vertebrados morreram.
É difícil de estimar os números reais da população de tamanduás-bandeiras em São Paulo. Mas os próprios indicadores registrados no Cempas, segundo Zacariotti, dão um indicativo de que existe muito trabalho a ser feito para a proteção da espécie. Se em 2022 chegaram a Botucatu 20 exemplares, no ano passado, o número subiu para 30.
“Só este ano, nos três primeiros meses, o número já chegou a 10”, explica o diretor científico do IDF. Segundo os veterinários, nem todos os animais têm condições de voltar para a natureza e alguns ficaram o resto da vida sendo bem tratados em recintos fechados.
“Como o Jorginho chegou pequeno, conseguiu um bom ganho de peso e teve uma fratura no braço tratada sem maiores complicações, reuniu condições para a soltura”, diz Zacariotti. Outros oitos tamanduás estão na fila para o processo de soltura branda, e todos estão sob cuidados do Cempas no momento.
“Depois do Jorginho, o próximo deve ser o Guerreiro. Ele é um adulto que chegou da região de Ilha Solteira com uma fratura exposta no braço, mas agora está bem”, anima-se Zacariotti.
Educação ambiental para salvar tamanduás
Segundo os registros dos pesquisadores, o atropelamento em estradas e rodovias não é o único risco para os tamanduás que vivem na região de Botucatu. Ataques por cães e episódios de caça, na maioria das vezes, involuntária, também são problemas reais.
A região abriga grande quantidade de javalis, espécie cuja caça é autorizada pelo governo devido aos estragos que causam nas plantações, e que muitas vezes redundam em conflitos nas zonas rurais dos municípios. “As pessoas usam cães para caçar javalis.
Muitas vezes, durante as caçadas, os cães veem um tamanduá e partem para cima deles. Daí, os caçadores acabam atirando [e matando os animais selvagens] para que os seus cães não sejam machucados”, explica o veterinário do IDF.
Até por isso, explica Cláudia Brandão, coordenadora de pós-graduação em animais selvagens da Unesp em Botucatu, outro pilar de atuação do Cempas é a educação ambiental. “Neste ano vamos receber muitas escolas da região exatamente para mostrar a importância de preservar a vida dos tamanduás.”
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