Por meio de atuação extrajudicial, a Defensoria Pública conseguiu garantir a matrícula no curso de medicina da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Botucatu a um jovem indígena, de origem boliviana e naturalizado brasileiro, em vaga reservada à política de cotas para pretos, pardos ou indígenas.
Nascido na Bolívia, Abraham veio com a família para o Brasil aos 6 anos. Filho de mãe indígena da comunidade de Chirapaca, Zona Villa Allicia, na Província dos Andes, e pai indígena da comunidade Jancpo Marca, município de Guaqui, o jovem de 20 anos cursou ensino médio na rede pública do Brasil e se reconhece como pertencente à etnia aymara, povo originário de Peru, Bolívia, Argentina e Chile.
No final de janeiro deste ano, ele fez a pré-matrícula na Unesp em Botucatu, após ser aprovado para ocupar vaga dentro da política de cotas. Morador de Vila Velha (ES), ele já tinha se mudado para SP e assistia às primeiras aulas, quando recebeu e-mail comunicando o indeferimento da matrícula. “Foi uma apunhalada no coração”, conta. A justificativa: não teria cumprido requisito do vestibular, que exigia vínculo com comunidade indígena brasileira certificado pela Fundação Nacional do Índio (Funai).
RECONSIDERAÇÃO
Procurado por Abraham, o Núcleo de Defesa da Diversidade e da Igualdade Racial (Nuddir) da Defensoria encaminhou no dia 2 de junho ofício à Unesp pedindo a reconsideração do indeferimento. A coordenadora do Nuddir, defensora Isadora Brandão, argumentou que o fato de o jovem pertencer a etnia indígena não brasileira não poderia ter impedido a matrícula, pois a Constituição veda discriminação por origem ou nacionalidade, garantindo os mesmos direitos fundamentais a brasileiros natos e naturalizados e a estrangeiros.
Ela também embasou sua solicitação na Lei de Migração (13.445/17), que assegura acesso igualitário e livre de migrantes à educação pública, e na Lei 12.711/12, que instituiu o sistema de cotas, e ressaltou que a Funai já havia emitido documento registrando a autodeclaração de Abraham como de etnia aymara, ponderando que não caberia à autarquia definir quem é ou não indígena, mas somente atestar as informações prestadas.
AUTORIZAÇÃO
Em decisão publicada no dia 25 de junho, a Unesp acolheu o pedido e autorizou a matrícula. O professor Juarez Xavier, presidente da Comissão de Averiguação de autodeclarações de pretos e pardos no vestibular da Unesp, ressaltou que o órgão tem se posicionado favoravelmente ao ingresso como cotistas de pessoas com origem indígena fora do Brasil, considerando que a lei não determina territorialidade da etnia.
A Diretoria da Faculdade de Medicina de Botucatu (FMB/Unesp) disse ter ficado satisfeita com a resolução do caso e contou que, por intermédio das professoras Maria Cristina Pereira Lima (Kika – diretora) e Jacqueline T. Caramori (vice-diretora), escreveu ao jovem dando as boas-vindas pelo ingresso no curso de medicina da instituição.
Para o jovem, poder cursar medicina é mais que um passo para construir uma carreira. “É uma mudança de contexto, porque todas as minhas gerações antepassadas, da Bolívia, são de pessoas que trabalharam no campo, em plantações, e viveram apenas da agricultura familiar e em condições de pobreza”, diz. “E, numa sociedade boliviana, bastante racista, era senso comum que indígenas só tinham que trabalhar no campo, não em outros espaços. É uma honra saber que consegui mudar essa história, e gerar um exemplo para meus primos, aqui e na Bolívia”.
Por Jcnet
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