Cidade concentrou a distribuição de filmes do Interior Paulista nos anos 50 e 60, graças à ousadia e empreendedorismo do empresário Emílio Peduti
Na década de 50, a cidade de Botucatu (100 quilômetros de Bauru) foi batizada de “Cidade do Cinema”. O título fazia jus ao município do Estado de São Paulo que concentrava a distribuição de filmes do Interior Paulista, graças a ousadia e empreendedorismo de Emílio Peduti. O empresário e político, que marcou época, levou até as distribuidoras de filmes internacionais a se instalarem em Botucatu. Os escritórios geravam empregos para os jovens e levava o nome da cidade para o mundo.
Quem lembra muito dessa fase é o cinéfilo Benedito José Gamito. Ele conheceu Peduti ainda criança e foi trabalhar nos cinemas da cidade. “Eu tinha 12 anos e ia todos os dias ao cinema. Meu pai não aguentava mais pagar e então falou para eu procurar emprego no cinema. Trabalhava em troca de assistir os filmes. Não ganhava dinheiro. Trabalhei de vendedor de bala, bilheteiro, porteiro e lanterninha. No final exibia filmes.”
Segundo ele, Emilio Peduti foi uma era na década de 50. “Era uma verdadeira indústria cinematográfica para a época. O cinema, se não a única, a maior atração de lazer para o povo. Não só em Botucatu, mas em todas as cidades. Ele tinha cerca de 70 cinemas espalhados pelo Estado de São Paulo, Norte do Paraná e Mato Grosso, hoje Mato Grosso do Sul. Era uma rede de cinemas. Ele montou uma empresa, a Empresa Teatral Peduti.”
Como um dos maiores exibidores do Estado de São Paulo, Peduti só tinha um concorrente em Ribeirão Preto. “Não me lembro o nome. Ele exigiu que todas as empresas distribuidoras de cinema viessem se instalar em Botucatu. Ele conseguiu porque o prestígio dele era muito grande como empresário e político, era prefeito na época” , recorda Gamito.
Empresas como a Paramount, Metro Goldwyn-Mayer, Columbia Picture e Warner dentre outras instalaram seus escritórios na cidade. “Tanto companhias nacionais como as estrangeiras, elas tinham uma agência de filmes. Tinha a parte administrativa e o acervo. Os filmes eram locados em Botucatu. Qualquer cidade do estado que quisesse locar um filme tinha que recorrer à agência de Botucatu. Os filmes (em latas) eram despachados pelo trem da ferrovia que vinha de São Paulo e na estação de Botucatu estavam as latas de filmes esperando para vários destinos.”
O objetivo do Peduti de divulgar o nome da cidade e gerar empregos aos mais jovens foi atingido na opinião do cinéfilo. “Peduti foi agropecuarista, tinha duas ou três fazendas, a empresa cinematográfica e foi político. Para ganhar votos nas campanhas, especialmente de 58, ele fazia cineminha de rua. Não cobrava nada. Ele montava numa praça espaçosa, tipo um telão e o projetor de 16 milímetros onde exibia filmes de cowboy . O povão ia e lotava a praça. Ele falava cinco minutos de política, o resto era filme. Esse cineminha ficou conhecido como Pedutão.”
Emilio Peduti morreu aos 59 anos vítima de um infarto. Sua família não deu continuidade na cinematografia.
Ir ao cinema era um evento social
Na década de 50, o principal divertimento nos finais de semana era assistir aos filmes e o divertimento não era caro, conta Benedito Gamito
Quem viveu na década de 50 vai se lembrar do que o cinema e os filmes representaram para essa geração, enfatiza o cinéfilo Benedito José Gamito. “Naquele tempo as moças não saiam de casa a não ser para ir ao cinema. Os pais não deixavam elas saírem para a rua como é hoje. Não tinha balada. As moças iam para o cinema na primeira sessão no sábado e domingo. Os filmes começavam às 19h15 e terminavam pouco antes das 21h. Depois tinha o footing na rua Amando de Barros que é rua principal.”
Os jovens eram separados pela condição financeira. “As moças que frequentavam o cine Casino eram aquelas que tinham melhores condições financeiras. O ingresso era mais caro. A roupa delas era de luxo. Usavam vestidos longos. Elas desciam pelo lado esquerdo da rua, tomando por base o sentido de mão dos veículos. Os rapazes iam ao cinema de terno, sapato social. Pelo mesmo lado, andavam os moços bem cotados, que pertenciam a elite. Se alguém que não pertencesse a elite tentasse se aproximar, as moças nem olhavam.”
Do lado oposto da rua Amando de Barros desciam o pessoal que não pertencia a elite. “Os mais pobres eram discriminados mesmo. Os mais ricos frequentavam o cine Casino que ficava no Bosque e os menos favorecidos, o Paratodos, no Jardim Paratodos. As moças menos favorecidas conheciam os peões. O footing naquela via era durante o dia ou a noite. Tinha como ponto de referência os cinemas. Ambos eram do Peduti.”
Em 1958, Peduti instalou um cinema na Vila dos Lavradores. “O bairro é separado pela ferrovia, tem um pontilhão. Ali para cima na verdade é uma minicidade. É um bairro desenvolvido e o povo queria um cinema lá. O prefeito estava em campanha eleitoral e prometeu que se ganhasse a eleição instalaria um cinema lá. Ele não construía prédios. Tinha um empresário que construía e alugava para ele. O único prédio que era dele mesmo é o Casino. O estabelecimento ocupava um quarteirão.”
No final da década de 60, os cinemas que já não lotavam mais, lembra o cinéfilo, apelou para os filmes de pornochanchadas. “Eram filmes eróticos para chamar atenção, nem assim resistiu. Não tinha mais como sustentar o cinema. Foi caindo. Na década de 70 começaram a fechar os cinemas.”
O primeiro a fechar foi o Paratodos. Depois, o Vitória e na sequência, o Casino. “A televisão influenciou no fechamento. Na década de 70 veio a TV colorida. O pessoal não frequentava o cinema porque assistia aos filmes em casa e colorido. Veio o vídeo cassete VHS. Esse aparelho concorreu mais com o cinema público, conhecido como cinema de rua. Foi tão decadente que sobrou só o Nely que o Peduti arrendava.”
O cine Casino foi o primeiro cinema, recorda o cinéfilo. “Era o mais luxuoso. Estava na Praça do Bosque, hoje Praça Emilio Peduti. Tinha o Paratodos, mais popular, menos luxuoso. O ingresso era mais barato. O público alvo era o povão. Peduti queria que o pessoal de menos posses tivesse acesso. A diferença entre as duas salas eram o conforto. Os filmes eram os mesmos.”
Rádios de Peduti
Pouco antes de morrer, segundo o cinéfilo, Peduti comprou uma emissora de rádio para concorrer com um adversário. O adversário político era o Plínio Paganini. “O Plínio foi vice dele, mas não era voto vinculado. Ele tinha criado a Rádio Municipalista em maio de 62. Naquele tempo em Botucatu, era uma guerra ideológica de duas frentes políticas.
A do lado estava Jânio Quadros e de outro Ademar de Barros. O Plínio era do ademarismo e o Peduti do janismo. As rádios existem até hoje. As duas estão bem próximas na praça do Emilio Peduti. Ambas estão arrendadas”, relata.
Prédio virou farmácia
O cinema da Vila dos Lavradores virou uma farmácia, conta Benedito Gamito. “A população criticou, mas mesmo assim era murada a fachada e instalaram a venda de remédios. O Paratodos virou o Teatro Municipal, a prefeitura comprou o prédio. O Casino se transformou em um restaurante. O Nely ficou com a empresa Araújo & Passos. Há mais ou menos dois anos o prédio foi vendido para a prefeitura e se transformou em sala de teatro e eventos.”
Um cinema no meu quintal
Toda semana os amigos de Benedito José Gamito se reúnem no quintal de sua casa. Eles vão assistir um filme da época deles. “Eu tenho um cinema no meu quintal. Tenho uma casa num terreno comprido. No final dele construí uma sala de cinema com 40 lugares para eu passar filme para os amigos da velha guarda. Toda semana tem cinema antigo e vem os amigos assistir. O Cine Paiol. Nome inspirado na infância quando eu fazia o cineminha da vela no paiol de milho.”
Apaixonado pela sétima arte, Gamito tem dois projetos desenvolvidos no Espaço Cultural da cidade. “Eu tenho um projeto que se chama Cine Janela. São exibidos filmes gratuitamente, uma vez por semana. Se não contar com a presença dos estudantes das escolas públicas, não vai ninguém”, lamenta. Para ele o cinema de rua é uma tragédia grega, pós advento dos cinemas de shopping.
Um museu móvel acompanhado de palestra é outro trabalho que o cinéfilo faz. “O meu museu fica guardado. Quando há solicitações, eu pego tudo e monto na cidade que solicitou. Exibo as fotos e as latas de filmes. Temos um filme feito aqui na época que o cinema completou 100 anos. Contamos tudo. É um material rico.”
Correndo com o filme na mão
Uma das curiosidades lembrada por Benedito Gamito é que muitas vezes os filmes eram exibidos simultaneamente em cinemas diferentes. “No Casino e no Paratodos. No Casino começa antes. Quando terminava a primeira parte, uma pessoa pegava a lata de filme e corria para o Paratodos. Depois ia buscar a segunda.
O trajeto era feito a pé, correndo. Quando o filme era exibido no Paratodos e no bairro, o filme ‘viajava’ de carro. “Tinha uma pessoa incumbida do serviço. Contratava um táxi para fazer o trajeto.”
No intervalo tinha diversão no cinema
Empresário de Botucatu começou a partir dos anos 30 e com a expansão dos negócios chegou a ter 70 salas de exibição de filmes em três estados
O historiador João Carlos Figueroa de Botucatu ressalta que dos anos 30 aos 50 a cidade viveu os anos dourados da indústria cinematográfica. “Peduti começou no ramo de cinema a partir dos anos 30 com a expansão das unidades exibidoras. E chega a ter 70 cinemas esparramados pelo estado. Ele tinha cinemas nas linhas ferroviárias. Na Sorocabana, Noroeste, Paulista e uma rede que avançava pelo Paraná e Mato Grosso, hoje Mato Grosso do Sul.
O período dos anos dourados do cinema, na opinião dele, coincidiu com a economia brasileira pós-guerra. “A exibição de filmes foi o principal divertimento das pessoas. Não existia a televisão. Tinha o circo, mas não era todos os dias. O cinema foi eleito como a grande diversão das famílias. É nesse período que o Peduti se afirma como grande exibidor brasileiro. Ele contratava artistas para entreter as pessoas antes e nos intervalos dos filmes. Mágicos e apresentações do rádio faziam parte da programação. Como ele tinha uma rede de cinemas, os artistas viajavam para todas as salas. Era uma forma de dourar a noite.”
A televisão não existia e a exibição de filmes era a principal atração para a população. “Os cinemas tinham grandes salas. Trabalhavam com 800 lugares. O Casino de Botucatu tinha 650 lugares e bancos de couro. Os cinemas de São Paulo tinham 800 lugares, caso do Pomodoro, Metro etc. Quanto mais poltronas, mais faturamento.”
Os cinemas trabalhavam com estoque cheio. “Não se trabalhava com sala pela metade e nem com salas pequenas, aliás não tinha sala pequena de cinema. Aqui em Botucatu tinha uma considerada pequena. O cineteatro Nely tinha 346 lugares. Hoje não é mais assim. As salas possuem 300 poltronas nos cinemas de shopping. Peduti trabalhou só como exibidor. Para a época ele era grande. Hoje, só um exibidor da cidade tem o dobro do que ele tinha.
A Araújo que já foi Araújo & Passos, tem 140 cinemas de exibição. A Passos tem 103 salas. Não podemos esquecer que estamos falando de 60 anos atrás.” Figueroa ressalta que as grandes empresas distribuidoras de filmes se instalaram em Botucatu. “No entorno das agências nacionais e internacionais se formou uma classe de cinematografistas. O Peduti tinha um departamento de revisão dos filmes. Quando a máquina exibidora picotava o filme, ele mandava para revisão. Os funcionários cortavam e faziam uma emenda. O filme ficava bom para ser levado á exibição novamente.”
No período áureo do cinema, lembra o historiador, a produção de filmes brasileiros não era acanhada. “Eram muito consumidos. Haviam estúdios famosos como a Vera Cruz, o estúdio do Mazzaropi que produzia muito. Ele fazia o filme e o controle pessoal da exibição. Vinha a Botucatu incluía os filmes dele na programação e ainda aparecia para fazer a fiscalização da contagem das entradas no cinema. Ele não tinha uma grande equipe. Então fazia isso pessoalmente.”
O historiador desconfia que a contagem da bilheteria garantia o preço cobrado pelo filme. “Desconfio que as negociações dos filmes eram feitas encima da expectativa de expectadores prevista. As distribuidoras de filmes tinham fiscais para isso. Todos os bilhetes de entrada eram rasgados, mas tinham que ficar arquivados em um saquinho, caso houvesse dúvida. Os fiscais ficavam com uma maquininha que era apertada a cada entrada. Eles fiscalizavam para saber se não estavam sendo ludibriados.”
Na opinião do historiador, Peduti foi considerado um grande empresário na área de entretenimento. “Uma pessoa ousada, empreendedora. Eu acho que as crises econômicas que se sucederam fizeram o negócio minguar. Um palpite meu; foi a maxidesvalorização de 74 quando as dívidas em dólar subiram 30% que acabaram com o negócio. Eles tinham dívidas em dólar, isso aconteceu quando o Delfim Neto era Ministro da Fazenda.”
Peduti foi prefeito de Botucatu
O município de Botucatu estava num descompasso com o desenvolvimento do estado quando Emílio Peduti assumiu seu primeiro mandato, em 1951. Época em que as indústrias paulistas se enveredavam para o interior e os municípios que fossem escolhidos viveriam um ciclo de crescimento e prosperidade, comenta o historiador João Carlos Figueroa.
A falta de energia que durante anos fez sofrer a população foi superada com a instalação da Subestação, eliminando a escassez, uma vez que o fornecimento era ilimitado. Nessa época começaram as instalações de nível superior. No setor industrial, as modificações foram sentidas. Surgem as primeiras empresas como a Sociedade Aeronáutica Neiva Ltda, a Petrac, a Mcatral, a Omareal e outras.
Quando assumiu seu segundo mandato, em 60, o prefeito encarou uma agenda que tiraria a cidade da letargia. Concretizou a instalação da Faculdade de Ciências Medicas e Biológicas de Botucatu e a Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Botucatu.
Na década de 70, a abundância de energia incentivou a instalação da Duratex e a Costa Pinto. Embora criadas e consolidadas em governos posteriores ao de Emílio Peduti, segundo o historiador, nada disso seria possível sem a solução anterior do fornecimento de energia elétrica.
(Fonte: JCNET/Rita de Cássia Cornélio)
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